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17 de setembro de 2007

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Cultura

O cantor das multidões


Luís Nassif
La Insignia. Brasil, setembro de 2007.

 

A chamada "Era de Ouro" da música popular brasileira teve quatro intérpretes de primeiro time: Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo e Silvio Caldas. O primeiro que conheci foi Galhardo, cantor de voz aveludada, rei das valsinhas, venerado por minha mãe e que foi expulso de Poços de Caldas nos anos 40 por se engraçar com as moçoilas. Quando o ouvi pela primeira vez, eu com meus 10 anos, por volta de 1960, a voz de Galhardo já ficara um tanto fanhosa.

Quando surgiram os primeiros rádios transistores, lá por 63 ou 64, eu ia dormir com meu radinho colado no ouvido, ouvindo o programa de saudades da Rádio Cultura de Poços de Caldas, comandado pelo Isidoro Júnior. Por meio do programa, conheci Francisco Alves, que morrera em 1952, e aí, confesso, fiquei vidrado. Orlando Silva veio um pouco depois na minha vida. A televisão chegara a Poços, e Orlando se apresentava em um ou outro programa de música. O mestre já estava algo destruído pelas drogas e pelo álcool, a voz perdera o brilho, ficara pastosa. Confesso que não percebi, de cara, a sua grandeza. Pareceu-me um Nelson Gonçalves envelhecido.

Só em 1970, já em São Paulo, ouvi suas gravações dos anos 30, nos fascículos da "História da Música Popular Brasileira", da Editora Abril. E, após a sua morte, um disco-entrevista magistral, do Zuza Homem de Mello.

Quando o ouvi interpretando o clássico de Bide e Marçal ("A primeira vez que te encontrei / Alimentei a ilusão de ser feliz"), quase caí da cadeira. João Gilberto a havia regravado no início de sua carreia, e, para a minha geração, sua interpretação era definitiva. Mas a de Orlando era insuperável.

Só não gostava do fato de ele ser apresentado pela crítica dos anos 70 como a antítese de Francisco Alves, tido como cantor dó-de-peito e de boleros. Chico Viola era um senhor intérprete, dos maiores que o país já teve. Só que, perto de Orlando, todos os demais se curvavam.

A redescoberta de Orlando Silva se deu nos anos 70, reforçada pelas declarações de João Gilberto e de Caetano Veloso, os dois maiores formadores de opinião da MPB.

Filhos da bossa prova, nós idolatrávamos Luiz Barbosa, Ciro Monteiro, Vassourinha, Roberto Silva e, especialmente, Mário Reis, com seu samba sincopado. São Paulo tinha seu gênio, Germano Batista, na ativa até hoje, mas algo esquecido.

Mas Orlando ia além disso. Dominava todos os gêneros com a mesma musicalidade, o fraseado inigualável, a divisão silábica imbatível, indo do samba sincopado à valsa, do Orlando sestroso de "Jardineira" ao cantor romântico de "Carinhoso".

Assim como João Gilberto, Orlando era um desbravador de talentos (como, aliás, foi Francisco Alves), não apenas o intérprete, mas o músico completo, que definia os arranjos e o estilo e criava os clássicos. Durante certo período de tempo Cauby Peixoto pintou como seu sucessor, mas não vingou. Roberto Carlos poderia ter sido um novo Orlando Silva, mas faltou-lhe o vínculo básico com a MPB, o repertório fundamental.

Capaz de levar multidões à frente das rádios, no início de carreira, Orlando não teve estrutura psicológica para enfrentar o sucesso. A partir de meados dos anos 40 entrou em decadência, ano após ano, droga após droga. E foi nessa situação que o conheci e não gostei dele, no início da minha adolescência.

Anos atrás, o crítico Luís Antônio Giron -que, quando não simplesmente provoca, é o mais original e provocativo da sua geração- escreveu um ensaio definitivo sobre a presumida fase de decadência de Orlando Silva. Nele, sustentava que, em vez de decadência, o período obscuro de Orlando Silva na verdade era um passo além na sua interpretação. A voz podia não ser mais cristalina como antes, mas a interpretação era sofrida, com as cicatrizes do tempo.

Com o século fechado, é quase certo que uma pesquisa com a crítica especializada conferirá a Orlando Silva o título de maior intérprete da história da música brasileira, seguido por João Gilberto.

 

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