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24 de outubro de 2007

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Cultura

Ibsen na Cornucópia


Helena Vasconcelos
Storm / La Insignia. Portugal, outubro de 2007.

O construtor Solness, de Henrik Ibsen.
Tradução: Pedro Fernandes. Encenação: Carlos Aladro.
Cenário e figurinos Cristina Reis
Teatro da Cornucópia. Lisboa (Portugal), 27 de setembro a 4 de novembro de 2007.

 

Em 1891 Henrik Ibsen regressou à Noruega depois de um prolongado exílio voluntário de 27 anos, durante os quais viveu principalmente em Roma, Dresden e Munique, com ocasionais visitas a casa. Foi então que escreveu "O Construtor Solness" a peça que marca a chamada terceira fase do dramaturgo, fase essa que se prolongou com "O Pequeno Evolf", "João Gabriel Borkman" e "Quando Despertamos de Entre os Mortos", o grupo de peças escritas no ocaso da sua vida, quando se distancia dos temas de "Hedda Gabler", a obra imediatamente anterior. É conveniente recordar que este regresso à pátria coincidiu com um período de mudança, em termos criativos e psicológicos. Dois anos antes, em 1889, Ibsen tinha passado parte da "saison" na estância de Gossensass, no Tirol italiano, e aí conheceu uma jovem vienense de dezoito anos, Miss Emilie Bardach. Edmund Gosse conta que " … (Emilie) costumava sentar-se num banco específico no Pferchthal e quando (Ibsen), por quem ela tinha uma adoração à distância, passou, ela teve a coragem de lhe sorrir. Estranhamente, ele retribuiu o sorriso e num ápice sentou-se ao seu lado. Rapidamente, ele descobriu onde ela morava e com igual pressa arranjou maneira de se apresentar à família em casa de quem ela estava hospedada. Talvez tenha acontecido que, até se separarem em Setembro, nem o velho dramaturgo nem a jovem se tenham apercebido do que a relação entre ambos representou para os dois. Mas a juventude fez exercer a sua vingança natural: pouco depois, Emilie Bardach escreveu de Viena a dizer que se sentia mais tranquila, mais independente e finalmente, feliz. Ibsen, pelo seu lado, estava com o coração desfeito, tremendo de êxtase, de alegria e de desespero avassalador."

"O Construtor" nasce possivelmente desta história pessoal e reflecte todo o drama interior do dramaturgo, confrontado com uma paixão caduca mas deslumbrado com as possibilidades dos sentimentos, certamente contraditórios, que o avassalavam. Conhecido e reconhecido em toda a Europa - onde os temas arrojados das suas peças provocavam escândalo e as suas opiniões contrárias à moral vitoriana criavam tumulto - Ibsen dedicou-se a escrever obras mais introspectivas e com uma trama psicológica cada vez mais densa. O tema do desafio ao puritanismo, a afirmação da liberdade individual, a glorificação de um lado solar, mais próximo da Natureza em contraste com as regras sociais rígidas da sua época e, principalmente, a angústia em relação à velhice precederam, de vinte e tal anos a história de Thomas Mann quando este se transfigurou em Professor Auchenbach em "A Morte em Veneza", um longo conto em que a quase perfeita beleza da juventude representa o despertar do erotismo num "vulcão que se pensava ser demasiado velho". "O Construtor Solness" começa como uma comédia de costumes. Solness é um bem sucedido, rico e admirado construtor, com um curriculum invejável. No seu atelier trabalham pai e filho, o velho arquitecto e o aprendiz , e uma jovem guarda-livros que lhe alimenta o ego, mostrando-se completamente rendida aos encantos maduros e à sabedoria erótica do patrão. Rapidamente, o robusto e vaidoso Solness começa a mostrar o seu "lado negro": o seu carácter tem falhas tremendas (como as suas construções), ele é impiedoso e totalmente egocêntrico.

Solness sabe que o tempo não pára, que a época da sua maior força e vitalidade já passou e que jovens, cada vez mais jovens, querem ocupar o seu lugar, não se conformando com a inexorável lei da vida e da morte. Mas Solness não se vai sem luta. Ele é forte, vital, cheio de energia, em contraste com a própria mulher, Aline, que definha numa infindável depressão desde a morte dos dois filhos bebés e do incêndio e destruição da sua casa. Aline é apoiada por um médico, o doutor Herdal que, na trama, desempenha um papel de "ligação" irónica entre as várias personagens. Ele é o único que, como homem da Ciência, se não deixa enredar no drama que se desenrola à sua frente, embora nos possamos interrogar sobre o tipo de relação que ele mantém com Aline.

No atelier de Solness, o velho Knut Brovik, a quem Solness usurpou o lugar, e o seu filho Ragnar, representam as três gerações, o mais velho que está a morrer e que recorda a Solness, bem demais, os seus actos passados, o próprio Solness que teima em não ceder o seu lugar ao mais novo e Ragnar, que é quem, na verdade, possui a centelha da criatividade e da "novidade". Kaia Fosli, a jovem guarda-livros, está destinada a casar com Ragnar mas está totalmente deslumbrada com Solness, um facto de que ele está perfeitamente consciente..

Mas a peça parece só começar verdadeiramente quando entra em cena a jovem Hilde, vinda das montanhas. Hilde vem cobrar uma promessa que Solness lhe fez, dez anos antes, quando ela era ainda criança. E uma criança não esquece, principalmente quando lhe foi prometido, nada mais nada menos, do que um reino. Solness, que entretanto se esquecera - ele, o importante construtor que ganhou fama e proveito - vê-se confrontado com uma vontade e um desígnio superiores aos seus e aos da sua "entourage". Hilde vai vergando tudo e todos sob a sua força e, à sua passagem, a alegria e o tumulto, o caos e a felicidade são tão vertiginosos como a queda final.

Apesar de o intervalo se dar antes do 3º Acto, na realidade, tudo muda a meio do segundo quando Hilde, depois de fazer (de ocupar o lugar) o papel de "filha" do casal Solness se apercebe da loucura de Aline que vive num universo de "faz de conta" e recorda com mais amargura nostalgica a perda das suas bonecas no grande incêndio do que a morte dos filhos. É nesse momento, com a sua arrepiante e livre gargalhada que Hilde (Beatriz Batarda) vai directa à sua "presa" e se apodera da alma do construtor Sollness. Muito se pode dizer sobre o texto - que poderá ter várias interpretações - mas a verdade é que a encenação de Carlos Aladro é rigorosa e estimulante.

Por isso é indispensável ir ao Teatro da Cornucópia, em Lisboa, ver esta peça. Uma , duas, muitas vezes. A leitura, o olhar, a percepção mudam a cada sessão. Luis Miguel Cintra é um monstro de palco, a sua segurança, força e ímpeto são notáveis. Beatriz Batarda dá-lhe réplica com um fulgor que tudo queima à sua volta. As suas variações de registo - de menina brincalhona a jovem sentimental, de boneca tirolesa a mulher devoradora e fatal, de terna irmã/filha a provocadora perversa, de Lolita a "anjo da morte" - arrebatam o espectador e mantêm-no em suspenso, arrepiado e tremente, do princípio ao fim. Mas se este "duelo" é o epicentro de uma tragédia surda - que tem muito do desafio prometeico e de lenda de Ícaro - todos os outros actores e actrizes, sem excepção, servem maravilhosamente o texto. De notar o registo discreto, subtil e simultaneamente pungente de Teresa Sobral como Aline. É uma mulher contemporânea de Ibsen, reprimida e infeliz, astuta e um pouco hipócrita que se escuda na sua dor lunática. Noutro registo, Sofia Marques aguenta-se maravilhosamente num papel que Ibsen quis fraco e desagradável. (Aliás, compreende-se mal a inclusão desta personagem que é como que uma caricatura de Hilde e a precede, sem grande êxito, nas boas graças do "construtor". Ela existe apenas pela tensão que cria entre Solness, Knut e Ragnar mas desaparece (quase) quando Hilde irrompe como uma fada ou um diabinho do folclore nórdico que Ibsen tanto apreciava.) José Manuel Mendes é pungente e heróico, Duarte Guimarães e Luís Lucas são os dignos e valentes peões nesta dança de morte.

A belíssima encenação, o cenário e os figurinos sempre oportunos e com soluções extremamente interessantes, o trabalho dos actores, tudo nos reserva surpresas e deslumbramento. Ibsen continua a arrebatar-nos porque as questões que coloca são intemporais. O que faz de nós seres humanos? Até que ponto podemos desafiar o divino e quebrar todas as regras? Será essa empresa um sinal de orgulho ou de criatividade? Como podemos conciliar os desvarios da mente e o ímpeto do corpo? Ibsen, o grande criador de figuras femininas, o homem que amava as mulheres, questiona-se aqui, de novo, sobre a essência feminina: será audaz e livre - perigosa, portanto - como Hilde? Recatada, recalcada, sofredora, torturada e enclausurada como Aline? Tonta e irreflectida, manipulável e fraca como Kaia? (É interessante ver, em palco as cenas em que as mulheres se encontram.) Muitas são as questões que nos ficam na memória e que o trabalho em palco suscitam: será Solness um herói ou um homem com pouco juízo? Será Aline a esposa submissa e sofredora ou uma burguesa dissimulada e perversa? E Hilde, representará ela a liberdade, a alegria e a juventude ou o preço a pagar por desafiar os deuses, como em Fausto ou Frankenstein? Qual é o papel de Ragnar? Serão todos culpados da morte de Solness? Ou esta morte será o corolário da tragédia, do "pecado" do pobre construtor?

 

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