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La insignia
29 de março de 2007


Enrico Berlinguer (IV)


Marco Mondaini
Gramsci e o Brasil / La Insignia. Brasil, março de 2007.


1. O governo de virada democrática. A aliança entre comunistas, socialistas e católicos [1]

Não foi pequeno o legado político deixado por Palmiro Togliatti aos seus sucessores à frente do Partido Comunista Italiano, na década de 1970. Personagem decisivo nas escolhas feitas pelo PCI ao fim da Segunda Guerra Mundial, Togliatti conseguiu levar o partido - depois de vitoriosa a resistência partigiana - para longe de uma linha insurrecional, por intermédio da elaboração de uma estratégia direcionada ao desenvolvimento máximo da democracia em todas as relações socioeconômicas e político-ideológicas existentes no território italiano: a "democracia progressiva".

Na verdade, a guiar Togliatti na defesa dessa nova estratégia encontrava-se o objetivo de destruir por completo as bases materiais e ideais que sustentavam o fascismo, desde a década de 1920. Em outras palavras, para o líder comunista italiano, falecido em 1964, a fim de que fossem cortadas todas as raízes responsáveis pelo surgimento do fascismo, outro caminho não poderia existir senão aquele da instauração da democracia entendida como um processo contínuo de ampliação.

Porém, para que fosse vitoriosa a estratégia da "democracia progressiva", as três grandes correntes político-ideológicas que se encontraram na resistência ao fascismo deveriam estar unidas na luta contra o ressurgimento de todo e qualquer regime análogo àquele liderado por Benito Mussolini. Ou seja, comunistas, socialistas e católicos não poderiam deixar de se aliar com vistas à formação de uma nova Itália.

Quase três décadas após a elaboração desta estratégia unitária, o novo secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, voltaria a enfatizar a necessidade do reencontro das três grandes correntes populares antifascistas italianas, com vistas à construção de um novo governo - um governo de "virada democrática".


Em um país como a Itália, uma perspectiva nova somente pode ser realizada com a colaboração entre as grandes correntes populares: a comunista, a socialista e a católica. Nesta colaboração, a unidade das esquerdas é condição necessária, mas não suficiente.

A natureza da sociedade e do Estado italiano, sua história, o peso das classes médias, a agudeza das grandes questões sociais, mas também políticas e ideais (a feminina, a camponesa, a meridional), a profundidade das raízes do fascismo, enfim, a grandiosidade mesma dos problemas a resolver e enfrentar impõe uma tal colaboração. Estamos dispostos a assumir nossas responsabilidades.

Sobre a questão da participação comunista num governo ou numa maioria parlamentar, definimos há muito tempo uma posição de princípio. Em duas hipóteses tal participação é admissível: ou a necessidade de enfrentar um ataque reacionário, que crie uma situação de emergência para a sorte da democracia; ou então a existência de condições que consintam realizar um programa renovador, que tenha o apoio consciente e ativo das grandes massas e que tenda a reforçar a unidade dos trabalhadores e das suas representações políticas e ideais. [...]

A construção de uma alternativa de governo está vinculada ao avanço destas múltiplas relações unitárias: quanto mais se for além da convergência sobre medidas particulares de reforma para se chegar à unidade sobre grandes temas da política nacional, tanto mais será difícil para a Democracia Cristã ocultar suas contradições internas, e da sua crise poderá brotar um deslocamento político de fundo de correntes católicas e seu entendimento com as forças socialistas e comunistas. Este é o mapa da mudança. Este é o modo de incidir sobre a DC. Esta é o caminho para fazer avançar uma alternativa de governo, baseada na colaboração das grandes correntes populares, democráticas, antifascistas.

Nós, comunistas, pretendemos jogar todo o nosso peso e dar toda a nossa contribuição para fazer amadurecer uma tal alternativa de governo. Para que se chegue a isso, é necessário que a unidade de esquerda supere os limites existentes até agora.

Origina-se daí o nosso discurso em relação ao Partido Socialista. Reconhecemos a mudança positiva que se deu na linha do Partido Socialista; e o fazemos com mais força ainda porque sabemos que nossa política unitária, perseguida tenazmente também nos momentos em que a polêmica era mais áspera, foi uma das condições desta mudança.

Não se mostrou realista, porém, a hipótese pela qual o PSI - coligando-se de algum modo com a oposição de esquerda, com os sindicatos, com as massas em luta, mas consideradas freqüentemente como força de pura pressão, e estando em um governo fundado na lógica da discriminação à esquerda - conseguiria impor de maneira gradual e indolor uma superação à esquerda dos governos de centro-esquerda e uma marginalização das forças de direita presentes de maneira tão consistente na DC, no governo, nos aparelhos de poder.

A unidade pela qual trabalhamos não comporta de nenhum modo o ofuscamento das características originais do nosso partido, da sua face verdadeira, da sua função histórica, que é insubstituível. Somos nós mesmos a não querer nos confundir com nenhum outro. Ao mesmo tempo, estamos conscientes de que, em um país como a Itália, não se pode ir adiante no caminho rumo ao progresso, à democracia, à emancipação do trabalho, sem a contribuição autônoma de outros componentes, entre os quais são essenciais o socialista e o católico.

Eis o significado profundo, não tático, do reconhecimento do pluralismo político e ideal que fizemos e repetimos, e que não vale apenas nas condições atuais da Itália, mas também na construção do socialismo no nosso país.


2. A ameaça do extremismo terrorista.
A estratégia da vigilância democrática
[2]

Em 12 de dezembro de 1969, tem início na Itália uma gigantesca onda de atentados terroristas responsáveis pela irradiação de um sentimento de medo por todas as regiões do território italiano - era a chamada "estratégia da tensão".

Fechando um biênio (1968-1969), em que novos ventos de mudança começaram a soprar com força, capitaneados pelo movimento estudantil e pelo movimento operário, uma bomba explode no Banco Nacional da Agricultura, na praça Fontana, em Milão. São 17 mortos e 88 feridos nesta que seria apenas a primeira de uma série interminável de carnificinas ocorridas na Itália até a década de 1980: a "estação das bombas".

Patrocinados inicialmente por grupos de extrema-direita neofascista, os atentados terroristas rapidamente começariam a ser levados a cabo também por agrupamentos de extrema-esquerda, formados na esteira da radicalização do movimento estudantil. Sintomaticamente, enquanto era realizado o XIII Congresso do Partido Comunista Italiano, chega a notícia de que havia sido encontrado um corpo dilacerado na base de uma torre elétrica de alta tensão localizada em Segrate, próximo a Milão, exatamente a cidade onde transcorria o congresso comunista.

O estupor é geral quando se descobre que aquele corpo despedaçado era do intelectual, empresário e dono de uma das maiores editoras italianas, Giangiacomo Feltrinelli, que, preocupado com a ascensão das ameaças golpistas de extrema-direita, começara a construir uma organização clandestina - os "Grupos de Ação Partigiana". Feltrinelli morrera ao tentar acionar os explosivos numa típica ação terrorista. Nesse contexto de crescente ameaça terrorista, Berlinguer e os comunistas italianos optam pelo reforço da estratégia adotada no pós-guerra - a da vigilância democrática.


O desafio das forças reacionárias à democracia italiana é insolente, e os perigos, graves. Mas aceitamos este desafio. Que estes senhores tomem cuidado, que a DC também tome cuidado para não quebrar a cara. As palavras do camarada [Luigi] Longo foram muito claras. Estamos prontos para combater em todos os terrenos, mobilizando as imensas energias democráticas deste país que já soube rechaçar outros complôs, outras ameaças, e ir adiante.

É também destas graves ameaças, da necessidade urgente de tirar a Itália desta obscura crise que emerge a necessidade de uma virada democrática, de uma nova direção política do país. Como o debate sublinhou vigorosamente, sabemos que o avanço na direção desta nova perspectiva requer um trabalho múltiplo e organizado em todos os terrenos: lutas reivindicatórias; lutas por reformas de estrutura; construção das mais amplas alianças sociais; defesa e desenvolvimento de uma rede de organismos democráticos de base e sua vinculação com as assembléias eletivas; batalhas ideais e de cultura.

Sabemos que este avanço não acontecerá de modo calmo e linear, mas através de fases alternadas e confrontos também ásperos. Todavia, há uma urgência premente, e é por isso que o voto de 7 de maio deve dar um poderoso impulso acelerador para que se vá adiante no caminho de uma alternativa de linha política e de governo.

Por isto, pedimos aos eleitores para bloquear e bater a força fascista, para golpear pela esquerda a DC, para fazer avançar a esquerda e o PCI. Pôr o problema deste modo significa trabalhar por um deslocamento de fundo, na direção da esquerda e na nossa direção, de estratos inteiros de trabalhadores, de classes médias, de intelectuais, de técnicos, de católicos, de mulheres. O voto no PCI, como sublinhou o camarada Longo, e o voto nas listas da esquerda unida para o senado é aquele que não só constitui a garantia mais segura contra toda ameaça à liberdade, mas também dá ímpeto, força, peso, capacidade de iniciativa às forças populares e democráticas presentes em todos os alinhamentos políticos.

Algumas palavras ainda, neste ponto, sobre os grupelhos extremistas. Fez-se grande barulho sobre isto, como se estivéssemos preocupados em perder votos à esquerda. Buscou-se reduzir nossa polêmica, que envolveu no passado, e mesmo neste congresso, problemas teóricos de concepção do mundo e de moral revolucionária, a um episódio de briga eleitoral.

Tolice. O que queremos sublinhar é que a situação mudou profundamente em relação a 1968 e a 1969. A política e a atividade dos dirigentes destes grupos não são mais a expressão, ainda que infantil e aventureira, deformada, do protesto e da rebelião juvenil. Ao contrário, assistimos a uma degeneração que deve preocupar não apenas a nós.

De uma parte, os dirigentes destes grupos se contrapõem abertamente ao movimento operário organizado, aos sindicatos, ao PCI, com um só objetivo: a desagregação. De outra, já é claro o risco de que, independentemente da vontade e da boa fé, a atividade destes grupos venha a ser utilizada pelas forças conservadoras e reacionárias como elementos daqueles tenebrosos planos de provocação de que falava antes, planos direcionados a golpear as próprias bases da democracia italiana, e em primeiro lugar a classe operária.

Este é o problema que colocamos ao partido, mas o colocamos com espírito aberto e confiante nos milhares de jovens que, com toda a boa fé, ainda seguem estes grupos. A eles estendemos a mão, queremos abrir os olhos para ajudá-los a voltar seu espírito de luta, seu ímpeto combativo, sua vontade de renovação, contra o inimigo verdadeiro, o fascismo, as forças conservadoras, o grande empresariado. Por isto, e não por mesquinho cálculo de partido, renovamos o apelo à vigilância, à disciplina democrática e de classe, como também, certamente, contra o desperdício dos votos.


3. O compromisso histórico: o aprendizado
com a trágica experiência chilena
[3]

A proposição de uma aliança de caráter antifascista que reunisse as três grandes forças de caráter democrático e popular italianas - isto é, comunistas, socialistas e católicos - não representa uma novidade na estratégia política desenvolvida pelo Partido Comunista Italiano.

Entretanto, é inquestionável a inflexão acontecida na forma de pensar tal aliança com a ascensão de Enrico Berlinguer à secretaria-geral do partido, em particular depois da trágica experiência vivida pelas esquerdas chilenas com deposição do presidente da República, Salvador Allende, e o conseqüente fim do governo da Unidade Popular, em 11 de setembro de 1973, por intermédio do golpe de Estado encabeçado pelo general Augusto Pinochet.

De maneira extremamente veloz, Berlinguer captou, na grave derrota sofrida pelas esquerdas chilenas, um recado que deveria ser decifrado o mais rapidamente possível pelas esquerdas italianas, em nome da preservação do tecido democrático nacional. A interpretação dada pelo comunista italiano aos fatos chilenos tinha um sinal inequívoco de que a linha política seguida pelo PCI era justa, devendo ser aprofundada no sentido da (re)construção dos laços de união existentes entre as forças responsáveis pela derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial.

O termo criado por Berlinguer para assinalar tal necessidade política não deixava margem a dúvida: o risco à democracia duramente conquistada nos anos da Resistência não deveria ser desprezado - muito pelo contrário, ele se mostrava cada vez maior com as ações terroristas patrocinadas pelo extremismo de direita e de esquerda. Assim, não restava outra opção a não ser a de proclamar, em alto e bom som, a exigência do estabelecimento de um "compromisso histórico", que reunisse às esquerdas comunista e socialista o centro democrata-cristão.


Os acontecimentos chilenos ocorreram e foram vividos como um drama por milhões de homens espalhados em todos os continentes. Percebeu-se e continua a se perceber que se trata de um fato de importância mundial, que não somente suscita sentimentos de execração em relação aos responsáveis pelo golpe reacionário e pelos massacres de massa, e de solidariedade com os que dele foram vítimas e a ele resistem, mas também propõe interrogações, as quais apaixonam os combatentes da democracia em cada país e levam à reflexão. [...]

Com este fim, é indispensável assumir também a tarefa de uma atenta reflexão, para tirar da tragédia política do Chile úteis ensinamentos relativos a um mais amplo e aprofundado juízo, seja sobre o quadro internacional, seja sobre a estratégia e tática do movimento operário e democrático em vários países, entre os quais o nosso. [...]

Assim, nossa tarefa essencial - e é uma tarefa que deve ser assumida - é a de preparar o tecido unitário, recolher a grande maioria do povo em torno de um programa de luta pelo saneamento e a renovação democrática de toda a sociedade e do Estado, e fazer corresponder a este programa e a esta maioria uma coalizão de forças políticas capaz de realizá-lo. Só esta linha, e nenhuma outra, pode isolar e derrotar os grupos conservadores e reacionários, pode dar à democracia solidez e força invencível, pode fazer avançar a transformação da sociedade. Ao mesmo tempo, só percorrendo este caminho podem-se criar, a partir de agora, as condições para construir uma sociedade e um Estado socialista que garantam o pleno exercício e o desenvolvimento de todas as liberdades.

Sempre soubemos, e continuamos a saber, que o avanço das classes trabalhadoras e da democracia será combatido, com todos os meios possíveis, pelos grupos sociais dominantes e seus aparelhos de poder. E sabemos, como mostra ainda uma vez a trágica experiência chilena, que esta reação antidemocrática tende a se tornar mais violenta e feroz quando as forças populares começam a conquistar os espaços fundamentais de poder no Estado e na sociedade.

Mas que conclusões devemos tirar desta consciência? Talvez aquela, proposta por alguns, de abandonar o terreno democrático e unitário em benefício de uma estratégia leviana, com a qual, todavia, chega-se rápida e inevitavelmente ao isolamento da vanguarda e à sua derrota? Ao contrário, pensamos que, se os grupos sociais dominantes obstinam-se em romper o quadro democrático, dividir em dois o país e desencadear a violência reacionária, isto deve nos levar ainda mais a ter nas mãos, firmemente, a causa da defesa da liberdade e do progresso democrático, a evitar a divisão frontal do país e a nos empenhar com ainda maior decisão, inteligência e paciência no sentido de isolar os grupos reacionários e buscar todo possível entendimento e convergência entre todas as forças populares. [...]

Em todos estes casos, sempre respondemos assumindo a bandeira da liberdade e o método da democracia, chamando as grandes massas trabalhadoras e populares a lutas bastante duras, e promovendo o mais amplo entendimento e convergência entre todas as forças interessadas na salvaguarda dos princípios da Constituição antifascista. [...]

O problema das alianças é, então, o problema decisivo de toda revolução e de toda política revolucionária, assim como também é decisivo para a afirmação da via democrática. [...]

Assim, não nos limitamos a buscar e a estabelecer convergências com figuras sociais e categorias econômicas já definidas, mas queremos conquistar e incluir, em um articulado conjunto de alianças, grupos inteiros da população, forças sociais não classificáveis como classes, tais como são, precisamente, as mulheres, os jovens e as jovens, as massas populares do Mezzogiorno, as forças da cultura, os movimentos de opinião; e propomos objetivos não apenas econômicos e sociais, mas de desenvolvimento civil, de progresso democrático, de afirmação da dignidade da pessoa, de expansão das múltiplas liberdades do homem. Eis o modo pelo qual nós entendemos e cumprimos o trabalho concreto de construir e preparar as bases, as condições e as garantias daquilo que se costuma chamar um "modelo" novo de socialismo. [...]

Conscientes disso, sempre pensamos - e hoje a experiência chilena reforça esta persuasão - que a unidade dos partidos dos trabalhadores e das forças de esquerda não é condição suficiente para garantir a defesa e o progresso da democracia, nos casos em que se contraponha a esta unidade um bloco de partidos que se situem do centro até a extrema-direita. O problema político central na Itália foi, e continua a ser mais do que nunca, exatamente evitar que se chegue a uma coligação estável e orgânica entre o centro e a direita, a uma ampla frente de tipo clerical-fascista, e em vez disso conseguir deslocar as forças sociais e políticas que se situam no centro até posições coerentemente democráticas.

Obviamente, a unidade, a força política e eleitoral das esquerdas e o entendimento cada vez mais sólido entre suas diversas e autônomas expressões são a condição indispensável para manter no país uma crescente pressão para a mudança e para determiná-la. Mas seria de todo ilusório pensar que, ainda que os partidos e as forças de esquerda conseguissem chegar ao patamar de 51% dos votos e da representação parlamentar (o que assinalaria, por si só, um grande passo adiante nas relações de força entre os partidos na Itália), este fato garantiria a sobrevivência e a ação de um governo que fosse a expressão de tais 51%.

Eis por que falamos não de uma "alternativa de esquerda", mas de uma "alternativa democrática", isto é, de uma perspectiva política de colaboração e entendimento das forças populares de inspiração comunista e socialista com as forças populares de inspiração católica, além de outras forças de orientação democrática. [...]

Certamente, somos os primeiros a compreender que o caminho rumo a esta perspectiva não é fácil nem pode ser encurtado. Bem sabemos, também, quantas e quais batalhas árduas e urgentes será necessário conduzir, nos mais variados planos e não somente no plano do nosso partido, com determinação e com paciência, para afirmar esta perspectiva.

Mas não se pode crer que o tempo à disposição seja indefinido. A gravidade dos problemas do país, as ameaças sempre iminentes de aventuras reacionárias e a necessidade de abrir finalmente à nação um caminho seguro de desenvolvimento, de renovação social e de progresso democrático tornam sempre mais urgente e maduro que se chegue ao que pode ser definido como o novo grande "compromisso histórico" entre as forças que reúnem e representam a grande maioria do povo italiano.


4. O compromisso histórico. O esclarecimento
da nova estratégia dos comunistas italianos
[4]

Se a estratégia proposta por Berlinguer de uma aliança entre comunistas, socialistas e católicos deita raízes na própria história do Partido Comunista Italiano, tendo um relativo consenso no seu interior, o mesmo não pode ser dito em relação à terminologia empregada pelo secretário-geral do partido para defini-la após os fatos acontecidos no Chile.

De uma maneira praticamente imediata, a expressão "compromisso histórico" começou a ser questionada das mais variadas formas, com ênfases também distintas. Isto, a começar pelo próprio presidente de honra do partido, Luigi Longo, que considerou equívoco o termo, já que a categoria gramsciana de "bloco histórico" seria mais apropriada, reforçando os vínculos existentes com as tradições teóricas do partido.

Na militância comunista, de outra parte, soava estranho falar em qualquer tipo de compromisso com a Democracia Cristã, já que, desde a derrota do fascismo, esta havia se tornado a grande adversária do PCI, tendo sido responsável direta pelo agravamento das discriminações levantadas contra os comunistas em território italiano, nos anos mais duros da guerra fria. Em poucas palavras, as dúvidas da gigantesca militância comunista giravam ao redor da seguinte questão: como assumir um compromisso, ainda mais histórico, com um adversário feroz depois de um quarto de século de graves enfrentamentos?

Diante de tais restrições surgidas tanto na cúpula do partido, como nas suas bases, não restava outra opção a Berlinguer a não ser sair em campo aparando as arestas, esclarecendo as dúvidas sobre a nova linha política por ele proposta. Tarefa de não pequena monta, pois que levada a cabo num momento de crescente tensão social, com a temperatura política crescendo de maneira acelerada em função do agravamento das ações terroristas patrocinadas pelos extremismos, de esquerda e direita.


Fez-se muito rumor sobre nossas recentes tomadas de posição, as quais nada mais são do que a reproposição e o desenvolvimento da indicação fundamental dada pelo nosso XIII Congresso, em março de 1972. Dissemos, então, que a salvação do país, o futuro da República, a renovação da sociedade só são possíveis se se realizar um encontro, uma colaboração, um entendimento entre os três grandes componentes populares italianos: o comunista, o socialista, o católico. Falamos recentemente de um "compromisso histórico", formulação que chocou e surpreendeu, apesar de exprimir de outra forma a substância da estratégia que seguimos há muitos anos. [...]

Mas o ponto sobre o qual queremos chamar a atenção dos trabalhadores e das outras forças de esquerda é a necessidade de buscar, de construir uma coalizão social, política e também de governo, que, não reduzível a uma simples maioria parlamentar por causa da amplitude das suas bases, proteja o país de toda aventura reacionária e garanta a renovação da sociedade. [...]

Não tenho aqui o tempo necessário para me aprofundar na discussão (seria uma discussão muito longa) sobre a diferença que pode existir entre "compromisso histórico", "bloco histórico", "encontro histórico", e assim por diante. Digamos brevemente que a substância é igual, em última análise; e digamos, sempre brevemente, e remontando àquilo que disse há alguns dias no discurso de Bolonha, que usei a expressão "compromisso histórico" também com uma intenção um pouco provocadora. Como sabemos, sendo a palavra "compromisso" entendida e usada correntemente, na vida comum e também na vida política, com um significado, digamos, um pouco negativo, tê-la escolhido serviu para chamar a atenção, para provocar uma discussão sobre a substância da nossa política. E este efeito foi obtido.

O mesmo camarada que fez aqui uma das perguntas relativas a esta questão disse que, no ônibus, nos meios de transporte que levam ao trabalho, não se fala mais de futebol, mas se fala de "compromisso histórico". Não acredito que seja propriamente assim, creio que se fala também de futebol e não há nada de mau que também se fale de futebol; também falamos disso e não vejo por que os operários não se devam interessar por futebol. De toda forma, é certamente importante que, além do esporte, além das questões salariais, sindicais e econômicas, também se fale de política e se fale de modo particular, hoje, na questão do "compromisso histórico". [...]

Vocês conhecem as distorções que foram feitas da nossa proposta. Por exemplo, afirmei que, ainda que os partidos de esquerda alcançassem, de eleição em eleição, 51% dos votos em toda a Itália (já temos isso na Emília, na Úmbria, na Toscana, mas falo de toda a Itália), esta maioria eleitoral não seria por si só suficiente para formar um governo capaz de durar, de resistir à hostilidade frontal dos restantes 49% e, concomitantemente, de realizar a obra de transformação que estaria na base do seu programa.

Alguns disseram que isto significa que os comunistas (imaginem só!) não querem que os partidos de esquerda alcancem 51% de votos [...]. O problema de fundo é ver se estes 51% poderiam governar, realizar aquela obra de renovação de que falei, tendo contra si todo o resto do país, digamos 49%. Num país como a Itália, pensamos que isto não seria possível. Pensamos que esta divisão frontal do país - de uma parte, os partidos de esquerda, de outra, todos os outros partidos contrários, alinhados de maneira decidida e enfurecida - não seria do interesse do nosso país e levaria à ruína a experiência de renovação da sociedade.

De resto, foi o que aconteceu no Chile. As esquerdas chilenas tinham 46%, e não acredito que as coisas teriam sido muito diversas se tivessem chegado a 51%. Os trágicos eventos do Chile nos ensinam e confirmam a justeza desta nossa formulação, desta nossa perspectiva política.

Naturalmente, não cometeremos nunca o erro de colocar no mesmo plano os delitos dos militares golpistas, que assim são e devem ser definidos, os delitos das forças imperialistas e reacionárias no Chile, com os erros que podem ter sido cometidos pelas forças populares. Mas lá, precisamente, o imperialismo americano - e ninguém pode negar que houve a mão do imperialismo americano -, bem como as forças capitalistas reacionárias internas da indústria, das finanças, da agricultura trabalharam arduamente para que se criasse uma divisão frontal no Chile: de um lado, a base, ainda que bastante ampla, que sustentava o governo da Unidade Popular, composta pela maioria dos operários e dos trabalhadores, por uma grande parte dos camponeses e pela parte mais avançada dos intelectuais; de outro lado, não apenas os grandes capitalistas, os grandes agricultores, os grandes financistas, isolados e sem base de massa, mas também a classe média e uma parte dos operários, dos trabalhadores, dos camponeses.

Eis a situação que permitiu a vitória do golpe militar fascista. Eis a situação que devemos evitar na Itália. Eis as razões pelas quais defendemos um "compromisso histórico", isto é, uma perspectiva de encontro, de colaboração (que não quer dizer, necessariamente, de governo, e, sobretudo, não quer dizer de governo imediato) entre todas as forças democráticas e antifascistas que têm uma base popular.

Há, ainda, uma outra falsificação: a que nos atribui a proposta de um acordo bilateral imediato com a DC, da forma como ela é hoje, passando por cima dos outros partidos. Não há nada disso. Sempre dissemos que, na Itália, existem três grandes forças de orientação popular: PCI, PSI, DC; sempre reconhecemos, e continuamos a reconhecer, a grande função que cabe ao PSI em uma política de renovação e de progresso democrático, e não queremos de nenhuma maneira passar por cima do PSI; e, ao mesmo tempo, reconhecemos e continuamos a reconhecer a função que também podem vir a ter, se tomarem uma orientação diversa daquela atual, isto é, uma orientação democrática e progressista, os partidos que são definidos como "menores", como o partido socialdemocrata e o partido republicano. [...]

Devemos considerar este dado de fato. De uma parte, propomo-nos naturalmente reduzir esta força (em outras palavras, o raciocínio que fiz antes no sentido de alterar a relação de força entre as esquerdas e a DC), mas, de outra parte, devemos ter também uma política em relação à DC, se não quisermos que a DC tome o caminho reacionário, porque isto teria as conseqüências mencionadas para a vida política do país, para o destino da democracia italiana.


5. O referendo sobre o divórcio.
Uma batalha em defesa dos direitos civis
[5]

Das inúmeras batalhas travadas pelo Partido Comunista Italiano durante os anos Berlinguer, uma se destaca pelo fato de ter sido responsável pelo afloramento de uma nova Itália no campo dos costumes. Do interior de uma Itália tradicionalista, informada pelos dogmas da Igreja Católica, sobe à tona uma outra Itália aberta às formas contemporâneas de vida cotidiana.

Dito de outra forma, no decorrer do ano de 1974, do interior obscuro de uma Itália ameaçada de um retrocesso de caráter confessional, nasce uma Itália verdadeiramente laica, plenamente garantidora dos direitos civis, das liberdades e garantias individuais e do pluralismo de opinião e consciência. A batalha em questão foi travada em torno da manutenção, ou não, da lei que dava aos cidadãos e cidadãs italianos o direito de se divorciarem.

Primeiro referendo da história da república italiana depois daquele que derrotou a monarquia em 1946, o referendo sobre o divórcio colocou em trincheiras opostas os defensores de um Estado laico, marcado pela nítida separação entre Igreja e Estado, religião e política, e os que pretendiam se utilizar da confusão entre as duas instituições a fim de preservar o status quo.

Assim, de um lado, posicionavam-se os setores mais retrógrados da Democracia Cristã, tendo à frente o secretário-geral, Amintore Fanfani, e, de outro lado, todas as forças republicanas do país, aí incluídos os socialistas e comunistas. No seu íntimo, Enrico Berlinguer via no referendo uma batalha perdida, em função da força do discurso religioso num país maciçamente católico. Porém, o resultado que sai das urnas, em 12 de maio de 1974, surpreende a todos: com uma maioria de 59%, a lei sobre o divórcio foi mantida. Era a vitória de uma Itália que se queria livre de qualquer espécie de intromissão confessional na vida particular dos indivíduos.


Por que falei de uma campanha argumentada e simples? Porque, antes de tudo, ilustrando e explicando os fins e os conteúdos da lei, vamos propor aos eleitores este primeiro quesito: o que significa a solicitação de abolir o instituto do divórcio? Significa -afirmamos - negar em princípio o direito e o dever do Estado italiano, em casos bem delimitados de matrimônios já falidos, de declarar a dissolução e disciplinar as conseqüências jurídicas, econômicas e sociais, no interesse dos próprios cônjuges, dos filhos e da sociedade inteira.

Ora, esta pretensão, esta negação de um direito-dever do Estado italiano é de todo absurda e inadmissível, tanto mais que até mesmo a Igreja, através dos tribunais eclesiásticos, sempre reservou para si mesma a faculdade de anular matrimônios falidos. E por que, então, esta faculdade deveria ser negada ao Estado? Derivaria daí a conseqüência paradoxal de uma disparidade de condições entre os que se casam na Igreja e os que se casam civilmente. Eis uma das razões que nos levaram a repelir a chamada notificação do Conselho Permanente do Episcopado Italiano, que contradiz, entre outras coisas, toda concepção pluralista e democrática de sociedade e, em substância, é uma manifestação de integrismo.

Vamos lutar, pois, contra a prevalência de um espírito abusivo que os próprios católicos de sentimento democrático não podem querer nem aceitar, porque o que se golpeia é a idéia mesma de liberdade. Tanto isto é verdadeiro que o único país europeu em que se aboliu o divórcio, quando venceu o fascismo, foi a Espanha franquista, que é também o país no qual existe a vergonhosa barbárie do garrote vil.

Eis o conjunto de razões pelas quais dizemos que o tema essencial da campanha do referendo é o tema da liberdade - o tema que sempre, em todos os tempos e lugares, mais do que qualquer outro, movimentou e inflamou o espírito e as ações humanas. E formular a campanha deste modo significa dar-lhe um fôlego que vai além dos limites de classe e das tradicionais posições políticas de esquerda, centro e direita, porque, para defender uma causa de liberdade, podem-se alinhar homens e forças de todos os setores e orientações, inclusive homens e mulheres muito distantes do nosso campo de classe e das nossas concepções ideais e políticas, das nossas e de outras forças de esquerda.

Trata-se, pois, de dizer "não" à revogação de uma lei e também, além da própria questão do divórcio, de dizer "não" àqueles que promoveram o referendo e recusaram toda proposta de acordo razoável para evitá-lo: e, assim, de dizer "não" a uma grave tentativa de abuso, de divisão dos trabalhadores e das forças populares, de perturbação da paz religiosa da Itália.

A batalha do referendo - sabemos - será difícil, como o são quase todas as nossas batalhas. Um dos nossos objetivos é fazer dela uma ocasião e um instrumento para que as novas massas de cidadãos possam compreender a política unitária, democrática e nacional do nosso partido, elevando sua consciência civil e seu nível cultural. [...]

Por que, então, se quer tirar do Estado italiano o direito de legislar sobre os casos de dissolução do matrimônio? Quer-se talvez um Estado teocrático, confessional, que imponha a todos os cidadãos a obrigação de observar os preceitos e os sacramentos de uma religião?

Neste ponto, surge um grande problema. A Itália chegou bastante tarde à unidade nacional também porque, até há um século, subsistiu um Estado pontifício, um poder temporal que se estendia sobre um vasto território da Itália e que, hoje, a Igreja reconhece ser um anacronismo. E por que, então, a Itália atual, depois de um Concílio ter declarado que a Igreja não quer mais privilégios, deve ser tratada ainda como uma província sujeita a um regime especial, quase como um braço secular? Eis um grande tema que deve interessar a todos aqueles, crentes e não crentes, que querem ser cidadãos de uma República livre e soberana, não anticlerical, mas também não clerical. [...]

Infelizmente, devemos notar com pesar que o empenho de uma parte do clero na atual campanha do referendo vem assumindo, cada vez mais, um caráter de ingerência em questões políticas, civis e jurídicas, e, assim, de retorno do espírito clerical. Não se pode silenciar diante de tal fenômeno, um fenômeno que duvidamos possa vir a ser vantajoso ao prestígio da Igreja, que de toda forma é anacrônico e não responde ao nível de consciência democrática dos cidadãos, crentes e não crentes.

Em 12 de maio, trata-se de defender com a lei o direito de uma minoria, qual seja, a minoria constituída por aqueles que possam necessitar do divórcio.

De tudo isto resulta o significado do voto, quer no seu aspecto específico, que diz respeito à manutenção ou não de uma lei sempre passível de aperfeiçoamento, mas irrenunciável, quer nas suas implicações gerais, que são políticas, mas não no sentido de que se trata de escolher a favor de um partido, mas, antes, no sentido de frustrar uma manobra da direita e um ataque à liberdade.


6. A introdução de elementos de socialismo no capitalismo.
Uma nova etapa da revolução democrática antifascista
[6]

Um dos momentos mais ricos, em termos teóricos, do período em que o Partido Comunista Italiano esteve sob a liderança de Enrico Berlinguer deu-se a partir da defesa da idéia de que era possível uma saída progressiva da lógica capitalista.

Atualizando a concepção gramsciana de "guerra de posição" e a togliattiana "democracia progressiva", Berlinguer apresenta a proposta da "introdução de elementos de socialismo na estrutura da sociedade capitalista" como a "nova etapa da revolução democrática antifascista". Em outras palavras, Berlinguer buscava esclarecer de que maneira os comunistas imaginavam a via de construção do socialismo nos países de capitalismo desenvolvido, em particular as nações da Europa ocidental.

O secretário-geral do PCI compreendia tal proposição como a afirmação de um forte poder democrático, suficientemente robusto para ser responsável pela programação do desenvolvimento econômico. Nesse contexto, uma programação feita por uma autoridade pública democrática e eficiente conseguiria dar forma a um novo campo de atividade empresarial, não mais dominado por monopólios.

Dessa forma, ficava clara a maneira berlingueriana de conceber a idéia de revolução socialista: uma revolução de caráter processual, que representasse o ápice do alargamento da democracia existente, e não sua negação. Uma revolução socialista que fosse o desaguadouro da ampliação sem limites da democracia, e não um acontecimento pensado em função do arruinamento das regras do jogo democrático.

Não restava dúvida em relação à opção realizada por Berlinguer de dar continuidade à tradição reformista (um reformismo forte) dos comunistas italianos, um reformismo aberto à superação da sociedade capitalista, um reformismo voltado à revolução.


Qual é o sentido geral destas três condições e qual perspectiva derivaria delas para o caminho da nossa sociedade? Cada uma de tais condições, e a conexão entre elas, requerem uma transformação do desenvolvimento econômico, da vida social, do bloco de poder e dos valores ideais e morais, uma transformação que, objetivamente, leva à superação progressiva da lógica do sistema capitalista.

De fato, as novidades que continuamente se afirmariam - nas relações de produção, na distribuição da renda, nas formas de consumo e nos hábitos de vida, na natureza do poder, através de reformas sociais, da planificação de relevantes setores econômicos e da extensão da vida democrática - introduziriam na ordem e no funcionamento geral da sociedade alguns elementos que são próprios do socialismo. Não se trata, pois, de colocar como objetivo próximo uma sociedade socialista, porque, para tanto, faltam ainda algumas condições de fundo, quer internas, quer internacionais, mas de realizar medidas e diretrizes que são por alguns aspectos de tipo socialista.

A luta de libertação nacional colocou as premissas da construção de uma ordem superior de sociedade e Estado abertos a todo e qualquer progresso. Então, agora, há necessidade de uma nova etapa da revolução democrática e antifascista, chamando a grande maioria dos cidadãos a se unirem - com um esforço excepcional de trabalho, luta, cultura e criatividade - em torno de um conjunto de objetivos que realizem a salvação e o renascimento do país, e o levem adiante. [...]

Evidentemente, uma das exigências que colocamos em primeiro plano é a de uma efetiva programação do desenvolvimento, confiada a um robusto e respeitável poder democrático. Isto significa subtrair às concentrações monopolistas, aos grandes grupos financeiros, às sociedades "multinacionais" o poder de determinar, como tem acontecido até agora, as linhas do desenvolvimento geral do país, as escolhas fundamentais relativas aos investimentos privados e públicos e à estrutura do mercado.

Mas esta indispensável avocação ao poder político democrático da função de definir as escolhas fundamentais e de operar as intervenções, a fim de proceder ao desenvolvimento na direção de determinadas metas, não implica absolutamente a estatização de toda a economia nem o desaparecimento dos mecanismos de mercado que constituem critérios necessários para medir o caráter econômico e verificar a validade das escolhas produtivas das empresas públicas e privadas.

Como se sabe, consideramos também que o setor público na Itália é já bastante amplo para poder constituir uma alavanca de orientação e de iniciativa na vida econômica a serviço dos interesses coletivos. O problema não é de quantidade, mas de qualidade, e diz respeito, assim, ao modo como são geridas as empresas públicas e as de participação estatal, um modo frequentemente inspirado em critérios burocráticos e clientelistas, fora de qualquer controle democrático e parlamentar.

Mas também os outros meios e instrumentos de intervenção e de direção, inúmeros e poderosos, dos quais o Estado dispõe no campo econômico (do orçamento público à administração corrente da despesa, dos bancos a uma série inumerável de entes e institutos), são utilizados freqüentemente no pior modo possível, já que neles reinam a arbitrariedade, a casualidade, o desperdício, o clientelismo, a ausência de controles, além da influência exercida nas suas decisões pelos interesses dos grupos econômicos dominantes. Uma das necessidades mais elementares, mas também das mais árduas, dado o estado em que se encontram as coisas depois de trinta anos de mau governo democrata-cristão, é justamente a de começar a pôr ordem nesta selva tão intricada.

Portanto, uma programação bem formulada e realizada comporta, certamente, o efetivo exercício do poder de decisão por parte de uma autoridade pública democrática e eficiente, mas, ao mesmo tempo, deve constituir um quadro de compatibilidades objetivas de tipo novo para o mundo empreendedor, deve deixar amplo espaço e estimular a iniciativa autônoma das empresas privadas na indústria, na agricultura e em outros setores econômicos.

Quanto ao mercado e às suas relações com a produção, trata-se de impedir, através da programação, que haja no mercado poucos monopólios - industriais, comerciais e financeiros - a comandar e a ditar leis não apenas no que diz respeito aos preços, mas também à estrutura do consumo e da produção, à utilização e à distribuição dos recursos.

A construção de uma nova ordem social superior, mais justa, mais produtiva e mais eficiente do que a atual pode e deve se desenvolver sem arranhar nenhuma das liberdades sancionadas pela nossa Constituição e respeitando os princípios e as regras democráticas por ela estabelecidos. Ao contrário, deve ser evidente que um processo de superação progressiva da lógica do capitalismo constitui a consolidação e favorece a contínua expansão da vida democrática, ao reduzir continuamente o poder de tipo oligárquico dos grupos econômicos e políticos até agora dominantes, ao desenvolver ao máximo a participação consciente, o senso de responsabilidade e a iniciativa de todos os estratos populares e de cada um dos cidadãos, ao ampliar o consenso e as bases sociais do Estado. [...]


7. Desenvolvimento e cooperação.
A proposta de formação de um governo mundial
[7]

Entre 18 e 23 de março de 1975, em Roma, ocorre o XIV Congresso do Partido Comunista Italiano. No seu decorrer, Enrico Berlinguer talvez tenha levado ao ponto máximo sua preocupação unitária. Isto porque, além de dar continuidade à defesa da linha do compromisso histórico, nascida em setembro de 1973, o secretário-geral do PCI ultrapassa os limites nacionais da inspiração unitária, chegando até o plano mais ampliado das relações internacionais.

Num momento ainda distante da entrada em cena das discussões em torno da idéia de globalização, Berlinguer reflete sobre a necessidade de ampla cooperação entre todos os países do mundo, sentimento de cooperação este que interligasse os países do Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Mundos numa rede de solidariedade capaz de vincular nações ricas e pobres, países capitalistas socialistas - tudo isto, tendo como elemento de intermediação a Europa Ocidental.

Entretanto, a maneira ousada por meio da qual Berlinguer pensou a necessidade da cooperação internacional avançou até os termos mais evidentes daquilo que pode ser denominado de utopia, pois da tribuna do Palácio do Esporte de Roma ele chega a cogitar a hipótese de formação de um "governo mundial", que fosse a "expressão do consenso e da livre contribuição de todos os países".

Ilusões à parte, o fato é que Berlinguer soube incorporar às questões abordadas pelos comunistas italianos a urgência de levar a cabo, de modo planetário, um novo modelo de desenvolvimento econômico, não predatório, mas sim preocupado com a manutenção da natureza e o equilíbrio do meio ambiente: um desenvolvimento sustentável.


[...] A primeira necessidade nos parece ser a de considerar todos os temas da cooperação na sua globalidade, seja no sentido de avaliar todos os aspectos numa perspectiva imediata e também a longo prazo, seja no sentido de envolver e de associar todos os países e todas as áreas do mundo.

Obviamente, então, globalidade significa não se limitar aos problemas do petróleo, mesmo que relevantes, mas também abrir a negociação sobre outras fontes energéticas, todas as matérias-primas, os produtos industriais e agrícolas, os serviços, a tecnologia e a pesquisa. E consideramos tudo isto não apenas em termos de desenvolvimento das trocas e da justa definição das correspondentes relações financeiras e monetárias, mas também e, sobretudo, em termos de autêntica cooperação rumo a formas cada vez mais ampliadas e orgânicas de integração e de divisão internacional do trabalho reciprocamente vantajosa.

Há quem proclame que está próximo o esgotamento dos recursos do nosso planeta e a única solução é estabilizar no estágio atual o desenvolvimento produtivo e o consumo. Mas pensemos nos resultados a que poderia levar uma cooperação mundial voltada para descobrir e utilizar as inesgotáveis fontes de energia, que podem vir não apenas do urânio mas do hidrogênio e, talvez, mais ainda do sol, dos oceanos e das profundidades em parte desconhecidas e, de todo modo, ainda amplamente inexploradas do subsolo! Pensemos, também, nas imensas extensões de terra que poderiam ser conquistadas ou reconquistadas para a fertilidade e o cultivo!

É claro que um sistema de cooperação de tal alcance, ao dar um impulso vigoroso, e até agora não pensado, à elevação e ao desenvolvimento das áreas atrasadas, criaria bases e saídas novas, também até agora não pensadas, para um novo desenvolvimento econômico e científico dos países já industrializados. Mas isto requer que a reconversão produtiva de tais países - que, de qualquer modo, a crise em curso torna urgente - já seja, desde agora, conscientemente levada a cabo, observando estes novos planos.

Eis a única perspectiva a partir da qual se podem ligar os interesses e as aspirações dos povos das áreas atrasadas com os dos povos dos países do Ocidente: operários e trabalhadores de outras categorias, milhões de desempregados e subempregados, jovens em busca de trabalho, técnicos, pesquisadores e intelectuais hoje submetidos a uma rotina aviltante, privada de valores autênticos e de perspectivas, classes produtoras que não têm pontos de referência seguros e estáveis para sua iniciativa empresarial. Eis a única perspectiva a partir da qual podem encontrar soluções questões como a da emancipação feminina, que está explodindo como uma grande questão mundial. De fato, agora está claro que, assim como existem inteiros povos que não querem e não podem ser mantidos à margem da história, as grandes massas femininas também aspiram à conquista de dignidade e igualdade plenas.

Para preparar, até mesmo gradualmente, um sistema de cooperação mundial, há necessidade da ativa contribuição de cada país do mundo, grande ou pequeno que seja. E isso pode apresentar vantagens concretas para todos. É evidente a contribuição que, para tal desenvolvimento da cooperação mundial, pode vir dos países socialistas, particularmente de uma economia robusta, poderosa e planificada como a da União Soviética; do mesmo modo, bastante grande poderia ser o papel da República Popular da China, plena e ativamente inserida na construção de uma ordem internacional de coexistência pacífica e no circuito da vida econômica mundial. É igualmente evidente que, para construir um sistema de cooperação com objetivos tão ambiciosos, é objetivamente indispensável que os EUA nele tenham parte correspondente ao peso decisivo que sua política pode ter para o destino da paz, à sua força e potencialidade econômica e às qualidades peculiares do seu povo.

De tudo isto resulta que a Europa Ocidental - que tem necessidade, mais do que nunca, de afirmar sua iniciativa autônoma e, pois, de se renovar profundamente - não somente não deve se contrapor à União Soviética ou aos Estados Unidos, mas também deve intervir, como interlocutor positivo e ativo, em todo o contexto das relações internacionais. Isto quer dizer também que ela deve se propor a tarefa de favorecer o diálogo soviético-americano e até mesmo fazer todo o possível para que ele, no quadro do processo geral de distensão, dê todos os seus frutos para o avanço de cada povo e de toda a civilização humana.

Se quisermos lançar um olhar mais adiante, podemos pensar que o desenvolvimento da coexistência pacífica, bem como de um sistema de cooperação e integração tão vasto a ponto de superar progressivamente a lógica do imperialismo e do capitalismo e de compreender os mais variados aspectos do desenvolvimento econômico e civil de toda a humanidade, poderia também tornar realista a hipótese de um "governo mundial", que seja expressão do consenso e da livre contribuição de todos os países. Esta hipótese poderia sair assim do reino da pura utopia, no qual se colocaram os projetos e os sonhos de vários pensadores no curso dos últimos séculos.

Naturalmente, damo-nos conta de que apresentar hoje esta hipótese contém notáveis elementos de futurismo. Mas recordemos que, para Lenin, os sonhos também podem ter um valor revolucionário. E, hoje, o que conta é captar e favorecer as grandes tendências progressistas que estimulam a humanidade a alcançar novas metas, e, entre estas, cada vez mais empolgante é a de construir um sistema de cooperação progressivamente mais amplo.

A esta perspectiva nós, comunistas italianos, queremos dedicar nossa iniciativa, conscientes dos limites das nossas possibilidades, mas decididos a explorá-las até o fim. Por todos estes anos, lutamos guiados pela verdade gramsciana segundo a qual nenhuma política econômica é válida na Itália, nenhuma renovação é possível se não leva à solução da questão meridional. Hoje, nosso discurso se amplia: nenhuma política é válida, nenhum avanço e renovação são possíveis no Ocidente se não contiverem em si a solução dos problemas do Terceiro e Quarto Mundo.


Notas

[1] Dos pronunciamentos feitos, respectivamente, na abertura e na conclusão do XIII Congresso do PCI, em Milão, 13-17 mar. 1972. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "L'alternativa politica e di governo che prospettiamo al paese". In: Id. La "questione comunista" II (1969-1975). Org. por Antonio Tatò. Roma: Riuniti, 1975, p. 404-32.
[2] Dos pronunciamentos feitos, respectivamente, na abertura e na conclusão do XIII Congresso do PCI, em Milão, 13-17 mar. 1972. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "L'alternativa politica e di governo che prospettiamo al paese". In: Op. cit., p. 404-32.
[3] Da série de três artigos publicados em Rinascita, 28 set., 5 e 9 out. 1973, com o título "Riflessioni sull'Italia dopo i fatti del Cile". In: Op. cit., p. 609-39.
[4] Do discurso proferido na conclusão da Assembléia Nacional dos Estudantes Comunistas, em Bolonha, 27 out. 1973, e da intervenção no encontro com os operários da Anic, em Ravena, 8 nov. 1973. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Per trasformare la scuola e l'istruzione per rinnovare l'Italia" e "Lavorare per l'unità di tutte le forze popolari". In: Op. cit., p. 640-9 e 650-8.
[5] Dos discursos proferidos no Palácio do Esporte de Roma, na celebração do Dia Internacional da Mulher, 8 mar. 1974, e em Pádua, durante a campanha do referendo sobre o divórcio, 7 abr. 1974. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Le donne, il PCI e il referendum sul divorzio" e "Sventare con il no le insidie alla democrazia costituzionale". In: Op. cit., p. 683-92 e 715-25.
[6] Do relatório e conclusões apresentados na reunião do comitê central do PCI, em preparação ao XIV Congresso, 10-12 dez. 1974. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Per uscire dalla crisi per costruire un'Italia nuova". In: Op. cit., p. 823-966.
[7] Do relatório apresentado na abertura do XIV Congresso do Partido Comunista Italiano, 18 mar. 1975. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Intesa e lotta di tutte le forze democratiche e popolari per la salvezza e la rinascita dell'Italia". In: XIV Congresso del Partito comunista italiano - Atti e risoluzioni. Roma: Riuniti, 1975, p. 15-76.



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