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La insignia
15 de junho de 2007


Gentrificação e «requalificação» urbana

O caso da Vila Itororó


Patricia Moraes
ArsCientia. Brasil, junho de 2007.

Imagem: Aline Fernandes


«(...) se não desejo que o seu olhar colha uma imagem deformada, devo atrair a sua atenção para uma qualidade intrínseca dessa cidade injusta que germina em segredo na secreta cidade justa: trata-se do possível despertar - como um violento abrir de janelas - de um amor latente pela justiça, ainda não submetido a regras, capaz de compor uma cidade ainda mais justa do que era antes de se tornar recipiente de injustiça. Mas, se se perscruta ulteriormente no interior deste novo germe de justiça, descobre-se uma manchinha que se dilata na forma de crescente inclinação a impor o justo por meio do injusto, e talvez seja o germe de uma imensa metrópole...» (Calvino, 2003).


Nos tempos atuais - nos países globalizados, regidos pelo neoliberalismo - "revitalização" de um espaço urbano tem igual significado de "volta à cidade" e reconquista de seu centro, um processo de reencontro entre cultura e capital, cujas finalidades vêm sendo justificadas pelo almejado "desenvolvimento urbano", que na verdade significa crescimento econômico da cidade, a fim de torná-la atraente para seus, e novos, investidores. Promove-se, então, a "reocupação" das áreas onde há maior investimento em infra-estrutura, indispensável para o crescimento do setor empresarial: o centro, dotado de grandes edifícios abandonados, especulando com os valores imobiliários à espera da revalorização prometida aos seus proprietários.

Têm interesse na "requalificação" dessas áreas governantes e investidores, juntos, na busca por uma nova fórmula que vise acumulação de poder e riqueza: o "tudo é cultura" (1) .

Para tanto, e não é simples emplacar essa "cultura empresarial", é necessário promover a "limpeza" das áreas a serem "revitalizadas", o que no moderno mundo dos negócios imobiliários significa retirar dos espaços - onde serão erguidos os centros culturais - seus moradores ou ocupantes e pôr em prática o modelo da gentrificação (2) nas grandes cidades globais(3) , analisadas anteriormente por Neil Smith (4) e Milton Santos (5) como cidades corporativas.

A exemplo de muitos imóveis da região central de São Paulo, a Vila Itororó - que se constitui de um palacete e outras 37 casas menores ao seu redor em uma área de 4.500 metros quadrados - encontra-se atualmente em situação de abandono. Estruturas ruindo, paredes que aos poucos vão perdendo os relevos originais e estátuas desmembradas na entrada. O imóvel que foi referência do apogeu do bairro paulista Bixiga, inúmeras vezes cantado por Adoniran Barbosa, aguarda urgentemente uma intervenção para preservar sua história.

Originalmente marcada pelo uso habitacional desde sua construção, em 1922, a área foi recentemente decretada espaço de utilidade pública, em janeiro de 2006, pelo então prefeito de São Paulo José Serra. Na ocasião foi anunciado para a vila e seu entorno um projeto de "revitalização" que visa recuperar seu significado histórico de quase um século.

A Vila Itororó, tombada como patrimônio histórico há 13 anos (6) , deverá abrigar, segundo tal projeto, o Pólo Cultural e Gastronômico de São Paulo anunciado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, que prevê oficinas de teatro, restaurantes e hospedaria para artistas.

Para a realização do chamado "projeto cultural" proposto pelo poder público, é preciso desapropriar a área na qual, atualmente, moram 71 famílias (7) , cerca de 250 pessoas vivendo nas mais diversas condições de moradia (8). Para tanto, se faz necessário qualificar o projeto a título de "interesse público" (9).

No caso da Vila Itororó, as informações levantadas mostram que as negociações para a desapropriação - anunciada pelo poder público como necessária para a implantação do Pólo Cultural e Gastronômico (projeto da Secretaria Municipal de Cultura) foram realizadas com o proprietário oficial do imóvel, a Fundação Augusto de Oliveira Camargo, e não com os moradores, que em sua maioria têm real direito à propriedade por residirem na área há mais de cinco anos (10).

Hoje, a maior parte dos moradores da Vila Itororó hesita em deixar as casas, apesar das condições, muitas vezes indignas, de moradia. A opinião desses ocupantes foi desconsiderada durante o processo inicial de divulgação do projeto criado pela Prefeitura, lançando dúvidas sobre a idoneidade da ação pública e, em termos práticos, a desapropriação da área a título de "interesse público" (11), sobretudo ao se destacar o aparente objetivo de entregar a administração e manutenção da área à iniciativa privada, mesmo sendo essa competência atribuída ao Poder Público, segundo Lei Federal.

Em outubro de 2005, a proposta da Prefeitura de São Paulo feita aos moradores foi incluir a Vila Itororó na Lei Moura - Lei dos Cortiços (12), que visa melhorar as condições de habitabilidade dos prédios encortiçados da região central de São Paulo, recuperar os imóveis e incluir as famílias em projetos sociais. Segundo matéria publicada no site da prefeitura municipal, na mesma época, a Vila Itororó seria o "próximo passo", ou seja,- com o Programa de Recuperação de Cortiços, os moradores da área teriam "outra perspectiva de vida". Para implantar tal projeto, que visa realmente a recuperação do patrimônio e oferecer melhores condições para seus usuários e moradores, não seria necessário retirar os ocupantes por mais tempo que o necessário para se concluírem as obras de restauração.

Mas, em poucos meses, moradores como Maria Aparecida Caetano - que comprou o equivalente a R$ 3 mil em materiais para a reforma e o acabamento da casa de três cômodos onde mora com seu marido - foram percebendo que o discurso de recuperar a área mostrou-se diferente na prática. Novos projetos foram feitos posteriormente pela Prefeitura, como a recente proposta de criação de um centro cultural no local. Apesar do interesse da administração municipal - demonstrada pelo decreto - o imóvel continua sendo de propriedade oficial da Fundação, o que não dá condições ao poder público para desapropriar a área; não antes de adquirí-la. No entanto, mesmo sem sequer ter negociado a compra do imóvel com a Fundação e, portanto, não ser representante legal da Vila Itororó, agentes da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) "visitaram" os moradores assim que se decretou a utilidade pública da área.

Sabe-se, por meio de documentos que descrevem o acompanhamento de desapropriações e desocupações na cidade de São Paulo (13), que esses agentes de habitação popular agem, por vezes, com desrespeito aos direito de moradia. No caso da Vila Itororó não foi diferente. Os agentes impuseram duas opções para aqueles moradores: deixar suas casas aceitando ou não aceitando as Cartas de Crédito (no valor máximo de R$ 40 mil).

Os moradores não sabem o que fazer, porque há pouca ou quase nenhuma informação repassada a eles, e a Vila continua no mesmo estado de abandono. Os moradores, muitos residentes há decadas na Vila, também acompanharam o interesse de governantes e empresários - o Grupo Pão de Açúcar, por exemplo - na recuperação da área, e garantem que o espaço é objeto de especulação política durante eleições.

A falta de clareza por parte dos poderes constituídos ao tratar da "revitalização" da Vila Itororó, demonstra uma prática obscura da administração pública de São Paulo ao longo dos anos quando o assunto é habitação. A desapropriação, que já foi anunciada como concluída em matéria consultada (14), sequer foi discutida com os moradores, e o prazo dado (agosto de 2006) para retirar os moradores e iniciar as obras não foi cumprido.

Ademais, o imóvel sequer foi adquirido pela Prefeitura, que se reuniu duas vezes com a Fundação Augusto de Oliveira Camargo para discutir a venda, sem sucesso. De acordo com o representante da FAOC, Renato Sargo, "o valor oferecido foi nada, na primeira reunião, simbólico, na segunda, e R$ 1 milhão, na terceira". Mas, além de negociar com a FAOC, a prefeitura - que descartou essa possibilidade no início - terá de repensar o trato com os moradores, já que muitos terão direito não apenas aos valores oferecidos pelas Cartas de Crédito e estão recorrendo à Justiça para requerer um documento legal que legitime a propriedade de suas residências, segundo determina a Lei de Usocapião Coletivo Urbano (15).

O próprio projeto de "revitalização" anunciado pela prefeitura que, claro, gera a recuperação física do Patrimônio Histórico, pouco se sustenta a partir da justificativa de promover cultura. Um exemplo é a Associação Viva o Centro, que trabalha em ações pró-cultura no centro Paulista e levanta a bandeira da "revitalização" das áreas consideradas deterioradas.

"(...) as relações da Associação Viva o Centro com o poder público não se esgotam nas diversas interfaces com a prefeitura e o Pró-Centro. Outra mediação, não tão visível ou comentada quanto a anterior, mas com vários níveis de articulação e também com determinados resultados concretos, é aquela estabelecida entre a Viva o Centro e o governo estadual. Isso vem ocorrendo por um lado, através da continuidade aos objetivos do projeto Luz Cultural, ou seja, a requalificação de uma área a partir da recuperação de algumas instituições culturais de peso. Tal projeto, por sua vez, pode vir a se articular com a possível transferência da sede do governo estadual para o Centro, que funcionaria como forte elemento indutor de requalificação. Esse conjunto de intervenções vêm sendo levadas adiante ou propostas sobretudo pela vinculação de todos os envolvidos [da Viva o Centro], direta ou indiretamente, ao PSDB, sigla que comanda tanto o governo do estado como a Presidência da República, desde 1995." (Frúgoli Jr.,2000:104)

A prefeitura ainda não declarou oficialmente quem deve arcar com os custos da obra, mas informou que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tem interesse em investir US$ 150 milhões no projeto. Depois de restaurada, a área será administrada por empresas privadas que, através da Lei de Incentivo à Cultura (16) , poderão explorar comercialmente o Pólo Cultural e Gastronômico durante dez anos com isenção de impostos. O Pólo, que deve abrigar, por exemplo, restaurantes, teatro e hospedaria para artistas, valoriza a área proporcionando a reestruturação de seu uso futuro, oferecendo oportunidades para a especulação imobiliária, que indiretamente aumenta a arrecadação tributária das prefeituras.

Sobre a questão, Ferraz (2004) descreve a problemática de considerar "uma região homogênea e sem conflitos como centralidade". De acordo com ele, "a região do centro sofre com a tentativa de um projeto de alteração do perfil de seus usuários e dos usos, de maneira a tornar o espaço estéril por meio de gentrificação" excluindo vendedores ambulantes e moradores com pouca ou nenhuma renda, "sem se preocupar para onde irão ou mesmo com a iserção destes programas de assistência social". Ferraz concluiu que o centro de São Paulo torna-se um museu, sem vida, "numa realidade montada com demagogia e violência simbólica - a globalização excludente tida como algo positivo". Para o autor há apenas uma alternativa para fazer do centro uma área democrática: "ou considera-se o centro uma área de usos mistos, sem excluir os atuais ocupantes, ou se destrói a atual situação e, no lugar, constrói-se um simulacro, uma espécie de 'teatro a céu aberto', onde uns são bem-vindos e outros não - neste caso, melhor mudar o nome 'centro'".

A cultura, e não especificamente no caso da Vila Itororó, nem de São Paulo, passa a ser a justificativa da retomada do uso "financeiro" do centro da cidade. A partir do uso da máquina cultural, observa-se o principal negócio das cidades "em vias de gentrificação" (17). Após a crise do modelo moderno de hábitos urbanos, adota-se como "novo" a retomada do objeto de valor histórico: é o Cultural turn, ou seja, a volta das estratégias culturais para a gentrificação - que se consolidou na década de 70, relançada após o final da década de 90.

A "requalificação" da Vila Itororó enquanto espaço habitacional, dando lugar para a mesma vila com fins comerciais, coloca uma pergunta sobre as políticas públicas de moradia em São Paulo (18).


Notas bibliográficas

(1) Teoria defendida por Otília Beatriz Fiori Arantes , professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
(2) A expressão da língua inglesa gentrification (enobrecimento) foi usada pela primeira vez pela socióloga britânica Ruth Glass, em 1964, ao analisar as transformações imobiliárias em determinados distritos londrinos. Entretanto, é no ensaio The new urban frontiers: gentrification and the revanchist city, do geógrafo britânico Neil Smith, que o processo é analisado em profundidade e consolidado como fenômeno social presente nas cidades contemporâneas.
(3) Em São Paulo - O mito da cidade global. Tese defendida por João Whitaker, livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), em 2001.
(4) Em The New Urban Frontier e Gentrification and the Revanchist.
(5) Milton Santos foi geógrafo e livre-docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
(6) Segundo Resoluções 01/93 e 22/02, a Vila Itororó é tombada como Patrimônio Histórico pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico (Cppndephat) e posteriormente pelo Conselho de Preservação de São Paulo (Conpresp).
(7) Com base em levantamento realizado pelo grupo de pesquisa Vida Associada em conjunto com o Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie (EMAU), foram contabilizadas 71 famílias que atualmente residem na Vila Itororó.
(8) A Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo classifica as atuais condições de moradia dos ocupantes da Vila Itororó como degradantes e inclui a área na lista dos cortiços da cidade.
(9) Uma das formas previstas pela Legislação Federal para se desapropriar uma área e utilizar seu espaço, principalmente se tratando de um patrimônio, é decretá-lo como espaço de utilidade pública, título de interesse público, ou seja, a área deverá ser de uso comum e de acesso da maioria da população local.
(10) Previsto no artigo 191 da Constituição Federal.
(11) Reza o artigo 23 da Carta Magna: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V - proporcionar os meios de acesso à educação, à cultura e á ciência; VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. VII - preservar as florestas, a fauna e a flora.
(12) Lei Municipal 10.928/91, criada em 1991. Desde a promulgação da Lei, não houve ainda sua efetiva aplicação, conforme notícia do site da prefeitura municipal de São Paulo - www.prefeitura.sp.gov.br.
(13) Por exemplo, no livro Parceiros da exclusão, de Mariana Fix. A estudante de arquitetura da Faculdade de Urbanismo e Arquitetura da USP, em 2001, acompanhou a desocupação da Favela do Gato, onde atualmente localiza-se a avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini.
(14) No site da prefeitura municipal de São Paulo - www.prefeitura.sp.gov.br .
(15) Informações obtidas através da Diretoria de Direito à Propriedade da Ordem dos Advogados do Brasil
(16) Lei Federal de Incentivo à Cultura - Lei Rouanet - Lei Federal 8.313/91
(17) Otília Beatriz Fiori Arantes.


Observação: este texto resume alguns resultados do projeto de monografia e confecção de videodocumentário para conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Paulista, Campus Cidade Universitária, que foi realizado por Patricia Moraes, Daniel Betting e Aline Fernandes, em 2006.



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