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La insignia
24 de fevereiro de 2007


Revolução passiva e americanismo em Gramsci (II)


Luiz Werneck Vianna
Gramsci e o Brasil / La Insignia, fevereiro de 2007.


O Risorgimento como questão para o Prefácio de 59

Se o Gramsci das fábricas de Turim não é tão diverso do perfil intelectual da vanguarda européia dos tempos de radicalização política do imediato pós-guerra, o da fase da bolchevização se vai distinguir a partir da sua busca e exposição ao que seria a especificidade italiana. Foi a tentativa de encontrar o caminho da Rússia, e não a sua militância nas fábricas, que o levou à descoberta da questão dos intelectuais em A questão meridional, a singularização do caso italiano se estabelecendo por contrastes e diferenças com o paradigma russo, como no caso do conceito-chave de hegemonia do proletariado:

[...] todos os problemas inerentes à hegemonia do proletariado se apresentam na Itália, sem dúvida, de uma forma mais complexa e aguda do que na Rússia porque a densidade da população rural italiana é muitas vezes maior, porque nossos camponeses têm uma riquíssima tradição organizativa e sempre conseguiram impor sua força de massa na vida política nacional, porque, aqui, o aparelho organizativo eclesiástico tem dois mil anos de tradição e se especializou na propaganda e na organização dos camponeses de um modo que não encontra paralelo noutros países [13].

As Teses de Lyon, como se viu, concederam foco privilegiado ao atraso - o Mezzogiorno, o campesinato. Tal privilegiamento, porém - Gramsci começa a descobrir em A questão meridional -, longe de apresentar o atraso como vantagem para uma solução revolucionária, na verdade, parecia indicar o oposto, uma vez que era ali que se garantiria a reprodução da coalizão reacionária entre industriais do norte e o bloco agrário do sul. Intervir no Mezzogiorno, reserva do patrimonialismo da nobiliarquia e do séquito de classes parasitárias que orbitavam em torno dela, impunha uma política ativa que quebrasse a cadeia entre os grandes proprietários de terras, os seus intelectuais - grandes e pequenos, religiosos ou laicos - e a massa do campesinato.

Daí que do atraso italiano não se deveria esperar o tempo súbito e fulminante dos revolucionários russos: a sua especificidade recomendaria um andamento lento e molecular. Se o cenário das fábricas de Turim tinha sido o da revolta operária contra a exploração capitalista, o do sul agrário trazia para Gramsci a necessidade de refletir sobre as circunstâncias da servidão voluntária, consensual.

Consenso, "funcionários do consenso" - os intelectuais, na conceituação dos Quaderni -, a dimensão de cultura como fator de dominação/emancipação, são os novos temas, ainda pensados em um cenário assemelhado ao russo, e com uma lógica hostil ao Prefácio de 59, com suas exigências de maturação do desenvolvimento capitalista para uma passagem em direção ao socialismo. Além disso, em fins de 1926, o que já é inovação em Gramsci, no interior do seu campo intelectual, se acha limitado por uma perspectiva dominada por referências e categorias próprias ao Estado-nação, da qual somente se livrará em seus escritos da prisão [14].

Mas a bagagem da sua experiência vivida como militante revolucionário, e que vai acompanhá-lo na prisão, não se constitui apenas de questões substantivas sobre as condições em que a revolução opera. Inclui o ator, o partido, e, ao ser preso em 8 de novembro de 1926, Gramsci se mostrava em aberto desacordo com a feroz luta interna que tinha curso no Partido Comunista soviético. Na famosa carta, elaborada por ele, que os comunistas italianos dirigem a esse partido, faz-se uma dura advertência e a grave acusação de que os soviéticos estariam destruindo a própria obra da revolução [15]. No mérito da controvérsia, a direção partidária italiana aprova a posição dos dirigentes soviéticos, mas assinala a sua discordância quanto aos métodos de se constituir a unidade - na sociedade, diante do campesinato; no partido, diante da minoria -, que não poderia ser imposta mecânica e compulsoriamente (Gramsci, 1990d, p. 293).

Como é conhecido, Togliatti, então em Moscou, contestou os dirigentes do PCI, que teriam servido aos interesses da oposição à maioria do partido soviético, recebendo de volta, em 26 de outubro de 1926 - poucos dias antes do encarceramento de Gramsci -, uma resposta com termos ainda mais severos do que os constantes no documento anterior: "Sua maneira de argumentar", lhe diz Gramsci, "produziu em mim uma impressão penosíssima", e, adiante,

[...] seus argumentos estão viciados pelo 'burocratismo': hoje, nove anos depois de outubro de 1917, o que pode levar as massas do Ocidente à revolução não é mais o exemplo da tomada do poder pelos bolcheviques, porque se trata de uma situação que já cumpriu seus efeitos; hoje, o que exerce um impacto ideológico e político é a convicção (se existe) de que o proletariado, depois de tomar o poder, pode construir o socialismo" [16].

A carta se fecha com uma perspectiva que recorda o Gramsci do "conselhismo" e de L'Ordine Nuovo, e que será retomada na produção dos Quaderni: "a autoridade do partido depende dessa convicção, que não se pode inculcar às grandes massas com os métodos de uma pedagogia escolástica, e sim com os de uma pedagogia revolucionária [...]" (Gramsci, 1990d, p. 302-3). A revolução se condenaria a si mesma, caso fizesse a opção pelos meios coercitivos e burocráticos em detrimento da elaboração de um consenso e dos métodos da persuasão - entre a raposa e o leão, da metáfora de Maquiavel, Gramsci jamais tomará partido em favor deste contra aquela, no que vai ser um dos elementos de continuidade entre sua obra juvenil e a da maturidade.

Ao mal-estar com a questão soviética, inequívoco bem antes do culto à personalidade a Stalin (1929) e dos expurgos massivos da velha guarda revolucionária, acresce aquele que vai tomando forma em um terreno especificamente italiano. A Internacional Comunista sustentava que o fascismo seria um fenômeno político "orgânico e necessário" ao capitalismo em sua fase de degenerescência, do que resultava que as lutas contra aquele importavam uma passagem revolucionária para o socialismo, posição oficializada pelos italianos, em 1927, no editorial, atribuído a Togliatti, do primeiro número de Lo Stato Operaio (Spriano, 1967, Livro II, p. 105).

A posição de Gramsci, em agosto de 1926, sem se envolver com a controvérsia teórica sobre a natureza do fascismo, apenas fixando-se na leitura empírica da conjuntura, trazia em germe uma contestação à orientação da Internacional Comunista (Id., cap. 2; Badaloni, 1987, p. 41; Paggi, 1984, p. XV). Gramsci, tendo como referência a recente conjuntura francesa, em que a revalorização das instituições republicanas teria consistido na estratégia burguesa de desagregação e isolamento das forças revolucionárias, admite como provável o mesmo resultado para a Itália se "uma crise econômica, repentina e fulminante" viesse a provocar o derruimento do fascismo (Gramsci, 1990c, p. 284).

A variante tática - que não merecia tratamento afirmativo, como que percebida "naturalisticamente" -, denunciava como a previsão de Gramsci se achava desalinhada do programa, que sustentava o objetivo de ultrapassar o fascismo pela ditadura do proletariado, não deixando de antecipar as futuras posições defendidas na prisão - e que vão provocar, em 1930, desacordo com seus companheiros, aprofundando as condições do seu isolamento - em favor da convocação de uma Constituinte (Spriano, 1967, Livro II, caps. 2 e 4; 1977), em nome da ampliação da coalizão política contra o fascismo. De outra parte, indicaria, por meio de uma intuição ainda muito difusa, expressa na afirmação de que ao fascismo deveria suceder uma situação de intermezzo democrático, que a correlação de forças não seria tendencialmente favorável - inclusive pelo tipo de papel que se poderia esperar da corporação militar e da burocracia do Estado - a uma solução imediata em favor da revolução. Na hipótese, ficava a alusão de que a República, se viesse, deveria dotar o domínio burguês de "maior elasticidade" e, como na França, de maior capacidade para "frear a revolução" (Id., p. 284-5; Femia, 1981, p. 190 s.). O intermezzo democrático não necessariamente identificaria o processo italiano como o de uma revolução "em dois tempos" - a revolução popular antifascista sendo seguida, e no mesmo impulso, pela revolução proletária. Ficava, portanto, subentendido o ponto, a ser explícito e desenvolvido mais tarde, de que o objetivo estratégico consistiria na derrota do fascismo - e não na imediata superação do capitalismo pelo socialismo - abrindo-se a possibilidade de que ele viesse a ser sucedido por um regime liberal-democrático.

Os Quaderni começam a ser escritos em fevereiro de 1929, mais de dois anos após a prisão de Gramsci. Anos em que, na Itália, no partido e no mundo, o cenário de 1926 se torna irreconhecível para um observador de 1929: na Itália, o fascismo amplia suas bases de apoio, inclusive na estrutura política do Vaticano, ao mesmo tempo em que intensifica a ação dos seus aparelhos repressivos, levando o PCI a uma situação de clandestinidade absoluta (Spriano, 1967, cap. 6); na URSS, os conflitos no partido vão ser resolvidos pelos expurgos, tendo como primeiro alvo a oposição de esquerda trotskista, a que logo se segue a eliminação da direita liderada por Bukharin; no segundo semestre de 1928, o VI Congresso da Internacional Comunista denuncia a social-democracia como social-fascismo, instituindo-se, no ano seguinte, o sistema do culto à personalidade de Stalin e as bases do socialismo de Estado; no mundo, a crise financeira de 1929 parecia deixar para trás o capitalismo liberal, passando-se a uma fase de capitalismo politicamente orientado, com o corporativismo italiano e o New Deal [17]; o avanço dos nazistas na Alemanha, a emergência da questão colonial - principalmente China e Índia -, mais o já visível deslocamento do eixo econômico mundial da Europa para a América, condenavam ao anacronismo o viés eurocêntrico até então predominante na cultura socialista e marxista. Nesse quadro tão radicalmente novo, certamente que a frase gramsciana a respeito do seu afastamento do "mundo do passado" nada tinha de uma expressão retórica.

Nos Quaderni, desde seu ponto de partida, a reflexão "desinteressada" de Gramsci importa uma ruptura com a sua experiência anterior: seu plano de estudos, tal como é descrito em sua carta à cunhada, Tania, denuncia isso. Seu objeto consistia na história, na história italiana em particular, nos intelectuais e no americanismo [18], última opção que não podia deixar de ser surpreendente em um intelectual caracteristicamente europeu como ele. A mudança da agenda indicava o reconhecimento da perempção da anterior, cuja exaustão se fazia exprimir nas derrotas sofridas pela revolução socialista, especialmente na Itália, em que o fascismo, ao invés de conduzir o capitalismo a uma catástrofe final, importava a sua estabilização.

Muito claramente os Quaderni significam um abandono do marco de análise das Teses de Lyon, centralmente dominadas pela idéia de uma revolução próxima e por um ângulo nacional italiano. Nos Quaderni, o pensamento de Gramsci adquire uma dimensão internacional, e mesmo quando se detém na análise italiana, como no Risorgimento, ao procurar as raízes profundas para a emergência do fascismo, ele transcende seu caso nacional, fazendo dele apenas um exemplar no elenco de diferentes processos europeus de ingresso no moderno, nisso que vai ser a sua rica sociologia histórica comparada. Sobretudo nos Quaderni, Gramsci assume como novo objeto o capitalismo como processo mundial, quando os processos de longa duração vão ser incorporados à sua reflexão, com ênfase especial no tema da estrutura - os fatos. É por aí que os estudos econômicos de Marx vão ganhar presença e papel forte na sua argumentação, já recorrente, em chave positiva, a remissão ao Prefácio de 59, lugar, aliás, enigmático para a sua compreensão de revolução passiva, como será desenvolvido mais adiante.

A fortuna de Gramsci entre os pósteros não deixa dúvidas de que ele escreveu - como foi da sua intenção - für ewig, embora se possa ter convicção de que sua obra não é sistemática, derivando daí a dificuldade da sua interpretação. Como um modernista, seu pensamento avança por fragmentos: uns, abandonados logo que criados; outros, aperfeiçoados progressivamente por outros fragmentos, em um processo que certamente foi importante para a sua criação, na medida em que livre dos constrangimentos lógicos da exposição sistemática. Contudo, apesar disso, são muitas as sugestões de que o princípio de onde parte a sua construção teórica estaria na sociologia histórica comparada que se realiza em O Risorgimento. É nesse momento que Gramsci procura dar carne e osso, na perspectiva da história, da perspectiva epocale contida no Prefácio de 59, visando distinguir, no terreno concreto dos processos de modernização europeus, como estrutura e supra-estrutura interagem na hora agônica da transição de um modo de produção para outro. A questão dos intelectuais, por exemplo, já descoberta em A questão meridional a partir de uma inquirição empírica, se amplia nos estudos sobre o Risorgimento, somente que, a esta altura, o seu desenvolvimento se dá no campo da teoria, muito particularmente no que se refere à inovação gramsciana sobre o conceito de Estado. Mas aí cessa o consenso entre os intérpretes, abrindo-se a controvérsia sobre qual leitura deve prevalecer depois de instituída a explicação do Risorgimento: com uma maior ênfase no papel das supra-estruturas, reconhecendo-se que a conclusão do Risorgimento está nos estudos sobre Maquiavel, como parece ser o caso, entre outros, de B. de Giovanni, U. Carpi, C. N. Coutinho, J. Femia, C. Buci-Glucksmann? [19] Ou a ênfase deveria recair no estrutural, quando o momento da conclusão seria deslocado para a análise de Americanismo e fordismo, como parecem sugerir, entre outros, N. Badaloni (1975), G. Vacca (1985), G. Baratta (1990), F. De Felice (1978)?

Evidente que a controvérsia não é politicamente ingênua, embora os termos que a estabelecem sejam, eles próprios, passíveis de uma outra controvérsia: uma obra que, por definição não visa o saber sistemático e a lógica fechada entre os seus conceitos e categorias, não pode admitir dois tipos de desenvolvimento como complementares, sem que se excluam mutuamente, cada um procurando dar conta de algo que o próprio autor somente se permitia dissociar analiticamente, como as esferas da estrutura e da supra-estrutura?

Decerto que uma ala do "partido Maquiavel", mais do que ressaltar o papel explicativo do supra-estrutural em Gramsci, tem como objetivo trazer a primeiro plano o tema da ruptura, e o que seria jacobinismo em Gramsci, em oposição ao "partido" adversário em sua valorização das "transformações moleculares" no processo de mudança social. J. Femia, em seu influente livro, mostra-se claramente a favor da tese da ruptura como ineliminável à construção gramsciana, não por acaso entende as notas sobre Americanismo e fordismo como de alcance limitado ao contexto particular americano, um caso nacional irreprodutível em razão da sua radical singularidade (Femia, 1981, p. 31). Isto, em que pese a afirmação de Gramsci de que o fordismo, além de racional, tendia à universalização (Q, 2173). Desprendendo o argumento de Gramsci da estrutura, ele surge em Femia como uma antecipação da Escola de Frankfurt, sugerindo-se que a sua contribuição ao campo do marxismo estaria no desenvolvimento especializado da sua temática supra-estrutural (Femia, 1981, p. 1 e 35).

Registre-se, de passagem, que Gramsci, nos Quaderni, chega à percepção da importância da supra-estrutura a partir de uma situação de atraso no desenvolvimento da estrutura, como nos países que chegaram ao moderno no contexto de revolução passiva da Restauração, e não pelo ângulo da cultura em geral. Diz-se "nos Quaderni", porque, antes deles, pela chave clássica bolchevique, a mesma percepção já tinha sido elaborada, como nas Teses de Lyon. Somente nos Quaderni, porém, o Prefácio de 59 será incorporado de pleno por Gramsci, estipulando o campo da estrutura em teoria e em abstrato que ele pretende "completar" - e não recusar - pelo recurso à história e à política como dimensões supra-estruturais.

Segundo Femia, o capitalismo seria, para Gramsci, um modo de produção em decadência (Id., p. 233) - como se Gramsci não tivesse identificado no fascismo um instrumento de modernização autoritária do capitalismo italiano -, extremamente vulnerável, portanto, ao exercício de uma contra-hegemonia, que viesse a impedir, a curto prazo, a sua reprodução. De algum modo, o tema do atraso se refaria no Gramsci dos Quaderni, em que o voluntarismo bolchevique seria substituído por um voluntarismo a ser manifestado na "batalha das idéias", Gramsci um Lenin do Ocidente que teria deslocado o campo de disputa da hegemonia da política para o front cultural, a guerra de posição um momento da preparação da ruptura revolucionária, logo que o último reduto do Estado estivesse dissociado da "trama privada" - a sociedade civil - que o guarnecia (Id., p. 205-6, 208 e 212). O leitmotiv de Gramsci na obra de Marx não seria, então, o Prefácio de 59, e sim as Teses sobre Feuerbach (Id., p. 71), traduzidas com acento amplamente favorável ao idealismo filosófico, como se o ator em Gramsci, como na Escola de Frankfurt, tivesse perdido o pé de qualquer ponto de sustentação na estrutura.

O entendimento de que a efetiva contribuição de Gramsci se limitaria ao plano supra-estrutural, de onde se extrairiam suas indicações para uma estratégia que viesse a "completar" o Risorgimento - uma revolução passiva - por meio de uma "anti-revolução passiva" [20] que, em algum momento, se investiria da forma da guerra de movimento, tem conduzido a uma percepção equívoca sobre o papel dos intelectuais em sua teoria: de personagens da sua sociologia política, como em A questão meridional e nos Quaderni, quando se investiga o papel dessa categoria social na solidarização entre sociedade civil e sociedade política, eles passariam a ocupar lugar dominante e substitutivo às classes sociais em sua política. Eles não seriam os intelectuais, mas a intelligentsia russa. Mas o fato é que o Gramsci dos Quaderni já se emancipou da teoria da vantagem do atraso e, aliás, é por isso mesmo que sua reflexão gravita em torno do Prefácio de 59 - não se trata mais de operar saltos e acelerações históricas. A intuição de Gramsci é absolutamente precoce e genial: assim como, depois de 1789 e das guerras napoleônicas que "exportaram" a revolução burguesa para o contexto patrimonial do continente europeu, a modernização burguesa seguiu seu curso na Restauração por meio da fórmula da revolução passiva, pode-se esperar que, após 1917, a transição para o socialismo reproduza um movimento semelhante? (Q, 1824). Se este é o sentido dos fatos, o ator das classes subalternas precisa se libertar das referências históricas anacrônicas, opondo a sua "guerra de posição" à "guerra de posição" da burguesia (Q, 2010), ambos envolvidos no mesmo processo de revolução passiva.

Gramsci não é um teórico da supra-estrutura. Como assinala N. Badaloni, "seu pensamento geneticamente se orientou para sentido oposto" (Badaloni, 1975, p. 123). Como em sua fase juvenil, dominada pelo tema da fábrica, nos Quaderni seu ponto de partida estaria em encontrar a superação da sociedade capitalista pela condução direta das forças produtivas por seus novos portadores, abrindo-se caminho para "um tipo de supra-estrutura que fosse modelado, tanto quanto possível, pelas próprias forças produtivas" (Id., ib.). Gramsci não colocaria a subjetividade acima da objetividade, não colocando, na precisa observação de C. N. Coutinho, "a política acima da economia" (Coutinho, 1989, p. 55). As estruturas e as supra-estruturas formariam um bloco histórico, categoria que importa de Sorel e que, no significado que Gramsci empresta a ela, consiste em sua forma de resolução do enigma contido no Prefácio de 59.

Os homens tomariam consciência da sua posição no terreno da supra-estrutura - o Marx da Ideologia alemã, neste ponto, mais uma recorrência em Gramsci -, evidência de que entre estrutura e supra-estrutura "há um nexo necessário e vital" (Q, 1321). Um simples esqueleto - na metáfora gramsciana - não induz ninguém a se enamorar de uma mulher, embora se possa compreender o quanto contribui para a graça dos seus movimentos (Q, 1321). Não se trata de afirmar a primazia da supra-estrutura, e sim o da sua unidade com as forças produtivas, cuja condição está no domínio consciente do movimento destas por parte dos seus portadores. Mesmo sem tal unidade, contudo, o desenvolvimento da estrutura segue produzindo mudanças, embora, nas palavras de N. Badaloni, "tenham lugar sem correspondência visível com as transformações nas relações de produção, e de um modo tal que a sua extrema lentidão sugira a aparência de imobilidade" (Badaloni, 1975, p. 152).

Programaticamente, portanto, a solução de Gramsci para o problema do Prefácio está no domínio consciente do campo da estrutura, por meio de um bloco histórico que promova a transformação das relações sociais de produção, enquanto, analiticamente, admite a possibilidade de um processo mais exposto à ação desse campo, como fará explicitamente em Americanismo e fordismo. A configuração americana requeria um "mínimo de intermediação da política" (Q, 2146), sem reclamar, conseqüentemente, como insinua com argúcia G. Baratta, "uma fase hegeliana" com suas ênfases heróicas em soluções de superação do tipo "explosivo" francês (Baratta, 1990, p. 108). Inclusive porque, em formações como a americana, o Estado estaria mais presente em sua "trama privada" (em sua sociedade civil) do que em um aparelho político aposto à sociedade e lugar de transcendência, como em Hegel, dos seus interesses econômico-corporativos fragmentários.


A sociologia dos intelectuais e a revolução passiva

O Prefácio de 59, em torno do qual gravita a ciência política do Gramsci jovem e maduro, não podia deixar de constituir uma fonte de problemas teóricos para um autor e militante revolucionário, cuja experiência empírica imediata esteve sempre referida a países de capitalismo retardatário - a Rússia da revolução e a Itália. Nos Quaderni, nas notas sobre o Risorgimento, desde logo se tratava de entender como em um contexto nacional em que "não existia uma forte e ampla classe de burguesia econômica" (Q, 747), pudera se realizar uma revolução (sem revolução), promovendo o desenvolvimento das forças produtivas sem rupturas agonísticas com as relações sociais prevalecentes, as quais, mesmo assim, teriam sofrido um processo de mudança.

Jovem, Gramsci desafiara o texto do Prefácio e a obra econômica de Marx no artigo "A revolução contra O capital", em nome da defesa da Revolução de 1917: "não se poderia esperar que, na Rússia, se viesse a cumprir a História da Inglaterra, que se formasse uma burguesia, que viesse a ocorrer a luta de classes até chegar, finalmente, a catástrofe do mundo capitalista" (Gramsci, 1988, p. 36). Agora, nos Quaderni, nas notas sobre o Risorgimento, a inquirição sobre o Prefácio tem como objeto uma situação simetricamente oposta à russa de 1917, dado que o atraso, ao invés de favorecer uma ruptura revolucionária, teria propiciado uma modernização capitalista à base de uma coalizão política conservadora. Em torno do Prefácio, Gramsci vai construindo sua sociologia histórica comparada e sua teoria da política e do Estado, confrontando o seu enunciado com o processo de duas transições: a transição para a ordem burguesa, cujo desenlace francês é compreendido como a sua expressão clássica, embora a sua universalização, sob a Restauração, tenha obedecido à lógica da revolução passiva; e a transição para o socialismo, iniciada pelo processo revolucionário russo em uma circunstância de capitalismo retardatário - estranha, portanto, à lógica do Prefácio -, e que poderia conhecer uma fortuna assemelhada às revoluções passivas da burguesia no século XIX, no contexto histórico contemporâneo em que a guerra de movimento cedia lugar à de posição.

Gramsci, admitindo como explicativa a natureza epocale do Prefácio, problematiza, então, a forma histórico-concreta da transição de um modo de produção para outro, ora indicando as condições para uma primazia do papel das supra-estruturas - Restauração, revolução russa -, ora, em um pólo oposto, para uma primazia do papel da estrutura. Questão-chave em Gramsci, as relações da supra-estrutura com a estrutura vão ser resolvidas, como em outras passagens da sua explicação, pela intervenção da sociologia, embora sua retórica, com freqüência, favoreça a impressão de que privilegia o campo da epistemologia.

Nos textos sobre o fordismo, quando a sociologia histórica comparada de Gramsci incorpora a América à sua galeria de casos nacionais, o principal tema do confronto Europa (domínio das supra-estruturas) vs. América (domínio da estrutura) está na variável sociológica população. O caminho de afirmação do capitalismo europeu ter-se-ia dado em um ambiente "demográfico não-racional", expresso na existência de "classes numerosas sem uma função essencial no mundo da produção, isto é, classes totalmente parasitárias" (Q, 2141). Tais classes parasitárias - a nobiliarquia agrária e os estratos superiores da burocracia, nas elites dominantes, e o campesinato e a população urbana marginal (Nápoles), nos setores subordinados -, seriam incluídas nos sistemas da ordem por vias extra-econômicas, supra-estruturais, quando a sua posição relativa quanto ao Estado seria determinante da forma de apropriação dos recursos sociais e do tipo de controle social a que estariam sujeitas: a hegemonia das classes dominantes seria obra fundamentalmente da política (Q, 2146).

A dominância das supra-estruturas na configuração do sistema da ordem - a referência empírica é certamente a dos processos de revolução passiva europeus - se expressa em uma linguagem que quer ressaltar o seu caráter de perversão, e, nesse sentido Americanismo e fordismo consiste em um texto que desenvolve a sociologia política realizada em A questão meridional:

[...] 'a tradição', a 'civilização européia' [...], caracteriza-se pela existência de tais classes [parasitárias], criadas pela 'riqueza' e a 'complexidade' da história passada, que deixou um punhado de sedimentações passivas através dos fenômenos de saturação e fossilização do pessoal estatal e dos intelectuais, do clero e da propriedade agrícola, do comércio de rapina e do exército [...]. Pode-se inclusive dizer que quanto mais vetusta é a história de um país, tanto mais numerosas e gravosas são estas sedimentações de massas de mandriões e inúteis, que vivem do 'patrimônio' dos 'avós', destes pensionistas da história econômica (Q, 2141).

Não à toa esta famosa passagem tem sua seqüência nas palavras dedicadas ao "mistério de Nápoles", coração do Mezzogiorno, cidade onde "quando um cavalo caga, cem pássaros jantam", cidade natal de B. Croce, "capital" supra-estrutural da Itália.

A esta composição de imagens degradadas, Gramsci opõe a limpeza e a transparência da "composição demográfica" americana, que "não está envolvida por esta camada de chumbo" (Q, 2145), em que "toda a vida do país está baseada na produção". Na sociedade racionalizada americana a "estrutura domina mais imediatamente as supra-estruturas", que são "racionalizadas" - a "hegemonia nasce na fábrica" (Q, 2146). Aí, um caso de feliz oportunidade para que os "portadores sociais das forças produtivas" possam vir a modelar as supra-estruturas, criando no tecido mesmo da sociabilidade as condições para o autogoverno e para a internalização do Estado, suprimindo a oposição entre o público e o privado.

A primazia da supra-estrutura, na transição à ordem burguesa, explicaria o conservantismo europeu, a aposição do público sobre o privado, bloqueando a livre expressão das classes produtivas no sistema das agências privadas de hegemonia. O protagonismo dos intelectuais no interior do Estado, e, ao tratar disso, Gramsci sempre evoca o idealismo filosófico como uma herança indesejável na cultura política européia, seria o melhor indicador de um Estado que amplia e intensifica seu domínio por meio de uma invasão persuasiva da sociedade civil, modelando - e contendo - a estrutura, nisso que, do ponto de vista da análise empírica imediata, apareceria como uma verdadeira inversão do enunciado do Prefácio.

Daí que se tenha, em Gramsci, uma função negativa dos intelectuais no mundo agrário italiano, no Estado do Risorgimento, mais inclusivamente, no da Restauração e no fascismo, pela identificação do papel desse estrato na "estatalização" da vida social sob domínio burguês. Decididamente, Gramsci não é o teórico da intelligentsia, como Mannheim, mas o autor de uma sociologia dos intelectuais, cujo alcance explicativo transcende a morfologia desse estrato, para se instalar no centro da sua ciência política como explicação do porquê, como e quando o domínio do Estado "se amplia" [21].

Gramsci, apesar dos anos em que esteve exposto à cultura política russa, nunca foi um narodnik, e, mesmo quando "foi ao povo", não foi a ele como um intelectual libertário no exercício de um mandato abstratamente racional, mas como representante de uma classe, à qual se dedicara em tempo integral na fase dos "conselhos", em nome, portanto, de interesses socialmente bem definidos. Em política, o papel do idealismo filosófico, com seu viés romântico, descentrado do interesse, orientado para a nação e o "espírito do povo", era, para ele, uma perigosa e reacionária teoria com que intelectuais se apresentavam, em nome de ideologias de Estado, como substitutivos às classes sociais.

A percepção negativa quanto ao protagonismo dos intelectuais na política é evidente na nota 150 dos Quaderni - período 1929-1930. Nessa nota, Gramsci distingue - uma construção que surpreendentemente recorda a de Tocqueville - os intelectuais que estão inscritos em formações nacionais com estrutura econômica forte, subsumidos organicamente ao mundo da produção e à vida mercantil, e nas quais o exercício da hegemonia requereria uma menor intermediação da política, daqueles que vivenciam uma situação nacional de arrumação oposta. A inscrição em massa desse estrato na vida pública em torno do Estado e das suas múltiplas funções corresponderia a um tipo de domínio burguês em que, historicamente, ter-se-ia predomínio das supra-estruturas sobre a estrutura. Gramsci não se detém na análise da intelligentsia - os funcionários da revolução de Tocqueville em O Antigo Regime e a revolução -, que, em teoria, seria um tipo social originário de uma dramática separação entre o Estado e a sua sociedade civil, cenário "oriental" que não faz parte do seu objeto. "Seu" intelectual revolucionário é "orgânico" [22], isto é, vinculado à classe operária, personagem central no mundo da produção, e não um herdeiro da razão iluminista e das teorias do direito natural, tal como na caracterização tocquevilliana, ainda hoje influente nas Ciências Sociais.

Para Gramsci, a primeira forma de articulação conduziria a uma lógica que se poderia designar como moderna. Dela proviria um Estado como configuração resultante "de um determinado mundo econômico, de um determinado mundo da produção". Para as classes produtivas - burguesia capitalista e proletariado moderno -, "a conquista do poder e a afirmação de um novo mundo produtivo são indissociáveis: a propaganda de uma é também a propaganda da outra; na realidade, é nessa coincidência que se funda a origem unitária da classe dominante, que é, ao mesmo tempo, econômica e política" (Q, 132-3) [23].

Exemplarmente, no capitalismo maduro, as supra-estruturas seriam tecidas - como no fordismo, como deveria ser na experiência do socialismo russo - pelos próprios portadores das forças produtivas. Mas Gramsci sabe que o exemplar, em teoria, não vem encontrando correspondência com a realidade efetiva das coisas. À diferença das previsões de Marx sobre a simplificação do Estado, processo que deveria acompanhar o aprofundamento do domínio do modo de produção capitalista em uma formação econômico-social, esta instituição ter-se-ia aproximado mais da complexa construção descrita em O 18 brumário. Mas, o que seria o caso singular em Gramsci - a América -, "é racional", e pode se universalizar. O Gramsci dos "conselhos" e de L'Ordine Nuovo se faz presente nos Quaderni: a sua via política de preferência enfatiza a estrutura, a fábrica, o mundo do trabalho, o território, afinal, do Prefácio. Como em Tocqueville, a Europa precisa aprender com a América.

A segunda forma de articulação entre estrutura e supra-estrutura seria própria dos países de capitalismo retardatário, a fraqueza da sua estrutura econômica sendo compensada por uma rica e complexa rede supra-estrutural - a análise de 1926 que se faz teoria nova nos Quaderni -, as "reservas políticas" do sistema da ordem que o protegeriam das crises econômicas, e, para as quais, os intelectuais seriam estratégicos. Nos Quaderni, a descoberta de que uma tal solução não seria meramente defensiva: no mundo retardatário, se faria presente a possibilidade, externa à lógica do Prefácio, das supra-estruturas se colocarem em posição de avanço quanto à estrutura - e não apenas pela lição já sabida da via revolucionária de 1917. Tal posição de avanço das supra-estruturas poderia vir a favorecer uma solução de modernização burguesa, como no incipiente capitalismo italiano à época do Risorgimento, quando se teriam criado as "condições gerais" para um ulterior desenvolvimento de suas forças produtivas (Q, 747-8). Para a burguesia, a "vantagem do atraso" não teria levado a "saltos", mas a transformações moleculares.

Nesse contexto é que se achariam os papéis fortes disponíveis para os intelectuais, nos quais "o impulso para o progresso não é estritamente vinculado ao desenvolvimento econômico local, mas é reflexo do desenvolvimento internacional que irradia para a periferia as suas correntes ideológicas [nascidas à base do desenvolvimento das forças produtivas dos países mais avançados]". É aí que pode ocorrer a subversão do enunciado do Prefácio: "então a classe portadora das novas idéias é a dos intelectuais e a concepção de Estado muda de aspecto. O Estado é concebido como uma coisa em si, como um absoluto racional" (Q, 132-3). Tem-se Hegel, e não Marx.

Ativas na mudança econômica, as supra-estruturas ainda mais se complexificam, envolvendo a estrutura em sua trama, impedindo ou dificultando que os sujeitos sociais diretamente afetos a ela se invistam de uma identidade organicamente articulada à sua posição social. Os casos de modernização burguesa "pelo alto", se confirmam o caráter epocale do Prefácio - o impulso dinâmico que os atinge é reflexo do desenvolvimento do capitalismo como fenômeno mundial - parecem, em suas manifestações empíricas, imediatamente políticas, contestar os seus termos: é a política que atua como libertadora das forças produtivas, e não o inverso, como se deveria esperar. Tal dominância das supra-estruturas - exemplar disso o papel privilegiado dos intelectuais -, encontraria sustentação nas correntes intelectuais sob influência do idealismo filosófico, e explicaria a formação dos Estados modernos na Europa como "reação-superação nacional da Revolução francesa e das repercussões das conquistas napoleônicas [revolução passiva]" (Q, 133).

Gramsci, depois de identificar o papel dos intelectuais meridionais no Risorgimento como derivado de concepções sobre um Estado "puro", um Estado em si, generaliza: "toda vez que os intelectuais assumem a posição de 'dirigentes', a concepção do Estado em si reaparece com o cortejo 'reacionário' que habitualmente a acompanha" (Q, 133; 1362). A revolução passiva seria o contexto do protagonismo político-social dos intelectuais.

É o idealismo filosófico alemão, vanguarda intelectual de um país retardatário, historicamente sujeito à fragmentação patrimonial e às invasões estrangeiras - como a Itália de Maquiavel - que vai entronizar conceitualmente os intelectuais em sua teoria do Estado como a sua aristocracia intelectual e ético-moral (Q, 1054) [24]. Gramsci coincide, avant la lettre, com o diagnóstico do jovem Marx em Crítica à filosofia do direito de Hegel, de 1843 - Gramsci desconhecia este texto, que não foi publicado no curso de sua vida -, ao reconhecer que as concepções hegelianas sobre o Estado, visto a partir do seu funcionamento efetivo, no continente europeu, consistiam no retrato fiel dessa instituição.

Mas cessa, aí, a convergência entre eles, não porque Gramsci apresente uma leitura de Hegel diversa daquela de Marx, mas pela diferença de objeto que os separa. O jovem Marx, no campo da filosofia política, denuncia Hegel por transformar a idéia em sujeito e o sujeito real em predicado, e propõe a sua primeira "inversão" teórica do sistema hegeliano: "Hegel parte do Estado e conclui que o homem é o Estado subjetivado; a democracia parte do homem e conclui que o Estado é o homem objetivado [...]. O homem não existe devido à lei; esta é que existe devido a ele" (Marx, s/d., p. 16, 46-7).

Gramsci, ao se fixar na forma, admitindo que a concepção do Estado em Hegel é o seu "retrato fiel", desloca o problema para o campo da sociologia política, especialmente da sociologia histórica comparada. O Estado moderno, cuja forma se realizaria como uma materialização das concepções do idealismo filosófico (Q, 133), designaria um tipo de passagem para a modernização capitalista em que as supra-estruturas teriam prevalecido sobre a estrutura, do que seria comprovação a centralidade, no interior daquele aparelho, concedida aos intelectuais como uma classe universal que se consagra ao governo e que teria no universal, na fórmula hegeliana, o fim essencial do seu desempenho. O "idealismo filosófico" não é apenas um problema filosófico em Gramsci, é também uma categoria sociopolítica para o seu permanente escrutínio do Prefácio. Categoria essa que associa a um processo de sinal negativo, indicando os termos de uma submissão da sociedade ao Estado, quando o maior risco não estaria na imposição coercitiva deste sobre aquela, mas no tipo de invasão persuasiva que ele organizaria sobre ela, contando com a eficaz mediação dos intelectuais.

O Gramsci que em filosofia fica com Hegel contra o pragmatismo, e que no debate com Bukharin procura resgatar o idealismo filosófico como fonte enriquecedora do marxismo (Q, 1413), situa-se em posição oposta na sua sociologia política. A nota 130 dos Quaderni - período 1931-1932 -, uma denúncia da "estatolatria", crítica intencional, e reveladora das raízes profundas do pensamento político de Gramsci, à forma com que se instituía o socialismo na URSS, ainda ecoa a sua visão negativa sobre os intelectuais como servidores do universal, que se realizaria em um Estado sobreposto à sociedade civil:

[...] a 'estatolatria' não deve ser entregue às suas próprias forças, nem deve, sobretudo, se converter em fanatismo teórico e se conceber como 'perpétua': ela deve ser objeto de crítica, precisamente para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, nas quais a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja 'estatal', embora não derivada do 'governo dos funcionários' (isto é, conseguir uma geração espontânea da vida estatal) (Q, 1020).

Gramsci, que toma a descrição do Estado em Hegel como coincidente com a realidade efetiva dessa agência, não aceita que a dimensão do público se apresente como uma "espiritualização" da esfera do privado, realizada pelos intelectuais em seu papel de uma aristocracia do Estado (Q, 1054). Como marxista, quer o cancelamento da dissociação clássica ao mundo burguês entre essas duas esferas, mas o "fim do Estado" não aparece nele como um simples levante revolucionário do social diante da política [25]. A "estatalidade" não deve provir "de cima", mas da sociedade - "da iniciativa dos indivíduos e dos grupos" -, e como criação espontânea dela. Em sua ciência política, Gramsci também "inverte" Hegel, não metodológica ou filosoficamente, mas no plano histórico-empírico: o ético-político - a Sittlichkeit hegeliana - deve ter a sua matriz deslocada do plano do Estado para o da estrutura - uma estrutura que gere supra-estruturas homólogas a ela: a "sua" sociedade civil [26].

Assim é que Gramsci, em seus comentários a Croce, sublinha que a concepção da história como sendo ético-política consistiria em uma "reação ao economicismo e ao mecanicismo fatalista, e pode ser assimilada como um cânone empírico de pesquisa histórica" (Q, 1234). Que o tema do ético-político não deva ser considerado:

[...] 'fútil' é o que demonstra o fato de que - contemporaneamente a Croce - o maior teórico da moderna filosofia da práxis [Lenin], no terreno da luta e da organização política, em oposição às diversas tendências 'economistas', revalorizou a frente da luta cultural e construiu a doutrina da hegemonia como complemento da teoria do Estado-força [...] (Q, 1235).

Daí que a expressão do ético-político em Gramsci tenha sua raiz no terreno do Prefácio, uma vez que a "qualidade-supra-estrutura" dependeria de transformações quantitativas no "quadro geral da 'estrutura'", sendo os portadores sociais desta última, e os interesses que representam - em um processo que "está ligado a uma dialética intelectuais-massa" -, aqueles que devem modelar as supra-estruturas (Q, 1386). Inverte-se igualmente a posição dos intelectuais - de aristocracia do Estado, como nos casos em que fortes e complexas supra-estruturas atuam diante de estruturas econômicas fracas, eles devem ser atraídos, pela elevação da cultura e da influência da "massa dos simplórios", para o pólo da estrutura e dos novos sujeitos sociais emergentes com ela (Q, 1386). Não há lugar, na teoria política de Gramsci, salvo como adversários, para os intelectuais de agenda hegeliana.

O ético-político nasce, pois, na base da sociedade - "a hegemonia nasce na fábrica" -, de onde parte um movimento teórico-prático em favor da internalização de uma nova "vida estatal", cujo avanço se faz registrar em cada ato ou fato que derrogue o Estado concretamente existente. A sociedade civil, de raiz moral do Estado e de instância que necessariamente conduz a ele, como em Hegel, deve, em Gramsci, significar o momento em que as forças originárias da estrutura escalam a dimensão supra-estrutural, dissociando a sociedade civil da sociedade política (o Estado em sentido estrito, na sua terminologia) e fazendo dela a sua forma expressiva [27]. Daí, é claro, a importância dos intelectuais, esses funcionários das supra-estruturas, para os interesses e a nova eticidade emergente no mundo do trabalho.

O caso geral de transição à ordem burguesa teria obedecido à lógica da revolução passiva, e foi essa a história que, em vez de promover a simplificação da forma do Estado, tal como prevista na análise de O capital, deu o resultado da sua complexificação, com os efeitos correspondentes de publicização da "trama privada" [28]. A invasão persuasiva da supra-estrutura sobre a estrutura, para ter seu movimento revertido, requer que os portadores sociais desta última instituam o campo das lutas por sua emancipação no próprio terreno em que se exerce a dominação sobre eles: o dos organismos intermediários - a sociedade civil gramsciana - que soldam o Estado com os indivíduos, os grupos e as classes sociais. A guerra de posição não consiste em um movimento tático para a preparação de uma guerra final de movimento: é nela que se desmontam os nexos internos do Estado com a sua sociedade, desamparando-o de suas "reservas políticas", como também se cumpre o processo de internalização de uma nova "vida estatal", quando, então, se "quebra por dentro" o Estado anterior, inviabilizando-o nas suas funções de garantidor da reprodução social.

Mas, além do Oriente e deste Ocidente que fez a sua história em "reação-superação nacional" da revolução francesa, desse mundo de supra-estruturas, Gramsci descortina, na Rússia e na América, a melhor possibilidade para a modelagem das supra-estruturas pela estrutura. Aí, as "estruturas falam", ou podem falar, criando um novo consenso, desde que livres do fanatismo da estatolatria, como na Rússia soviética de Stalin. O tema da revolução passiva deixa de ser história, como no Risorgimento, para se constituir em um problema vivo, e que reclama uma tomada de posição. Fora da Europa e da sua "carga de chumbo" cultural e demográfica, o Prefácio pode ser menos enigmático.


Notas

[13] Gramsci. "Correspondencia entre Gramsci y Togliatti" (1990d, p. 293). Documento do Comitê Político do PCI, elaborado por Gramsci, por ele enviado a Togliatti em outubro de 1926, e publicado na íntegra em Rinascita - Il Contemporaneo, de 24 de abril de 1970.
[14] Ver Vacca (1985, p. 56), cuja importante análise será retomada adiante.
[15] Gramsci. "Correspondencia entre Gramsci y Togliatti" (1990d, p. 293). Documento do Comitê Político do PCI.
[16] Gramsci. "Correspondencia entre Gramsci y Togliatti" (1990d, p. 302-3). Carta de Gramsci a Togliatti, de 26 de outubro de 1926.
[17] O impacto das grandes transformações na relação Estado-sociedade, nos anos 30, sobre os intelectuais italianos, é bem estudado em Marino (1983).
[18] "Carta a Tania", apud Gerratana (1975, p. LXIII).
[19] De Giovanni (1981); Coutinho (1989, esp. cap. 7). Coutinho, nesta que, sem dúvida, é a melhor exposição de autor brasileiro sobre a obra de Gramsci, não empresta relevância, significativamente, aos escritos gramscianos sobre americanismo-fordismo; Femia (1981) e Buci-Gluksmann (1980).
[20] Tal é o entendimento, entre tantos outros, de Buci-Gluksmann (1978, p. 124).
[21] Ver o desenvolvimento do tema em Coutinho (1989, cap. 5).
[22] Sobre intelectuais em Gramsci, ver Gerratana (1975, p. 1511-51).
[23] Gramsci desenvolve esta nota, que é do período 1929-30, mais de dois anos depois. Ver Gerratana (1975, p. 1358-1362).
[24] Sob esta chave analítica, Arantes (1991-92) estudou criativamente os intelectuais gramscianos. Sem maiores discussões, que transcenderiam o objetivo deste ensaio, fica o registro de que Arantes parece encaminhar para uma conclusão, a qual inscreveria Gramsci no campo do nacional-popular, que é inteiramente diversa da que aqui se defende.
[25] Nesse sentido, Gramsci se aproxima do Marx "jovem" da Crítica à filosofia do direito e da Questão judaica, que fez a crítica da "ilusão da política", expressa na pretensão de se modificar "por cima" a sociedade civil, como no caso exemplar de Robespierre, quando seria exatamente o oposto, de acordo com o autor, o que ocorreria no mundo real: a mudança na sociedade civil é que levaria à transformação da política. Sobre o ponto, ver Furet (1986, p. 25 s.).
[26] Ver Taylor (1983); Losurdo (1988, esp. p. 90 s.); sobre a diferença entre Gramsci e Hegel no que se refere à realização do ético-político, ver o estimulante trabalho de Golding (1992, p. 122 s., esp. p. 128-9).
[27] Sobre o conceito de sociedade civil em Gramsci, ver Coutinho (1989, p. 73 s.), uma clara e lúcida interpretação deste momento-chave da obra gramsciana; ver também Bellamy e Schecter (1993).
[28] Sobre o papel da "trama privada", categoria que Gramsci teria extraído da sua "leitura pluralista de Hegel", e que vai lhe permitir, na reflexão dos Quaderni, a elaboração do seu conceito de sociedade civil, ver Paggi (1984, p. XV).



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