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2 de dezembro de 2007

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Cultura

A história partida


Gildo Marçal Brandão (*)
Gramsci e o Brasil / La Insignia, dezembro de 2007.

 

Quando Oliveiros S. Ferreira falou-me sobre o livro que acabara de escrever, Elos Partidos: uma nova visão do poder militar no Brasil, disse apenas que era sobre civis e militares, da Primeira República a 1964. "Há uma introdução sobre o Império. Um capítulo sobre Armando de Salles Oliveira. O resto é civil e militar. Exceto a referência ao Império, é texto e mais texto deles: discursos, diários, etc. Os grandes nomes são os conhecidos: Getúlio, Juarez, Góes, Mourão. O Estado Novo é tratado também com o diário de Vargas. Mourão é a defesa dele contra Góes (Plano Cohen) e seu diário em março de 1964. O último capítulo é sobre o 'elo partido'."

Dito assim, parece simples, uma coleção de retratos históricos. Não é. Primeiro, porque Oliveiros é dos raros intelectuais capazes de surpreender o leitor em cada página. Em parte, isso tem a ver com o seu estilo elíptico, às vezes alusivo, outras quase esotérico - o de um escritor que fala como escreve. Mas esta é só a primeira impressão. Na verdade, a surpresa tem a ver com sua capacidade de forçar o ouvinte/leitor a prestar atenção no que diz, a acompanhar o seu raciocínio. O resultado é gratificante: ao revisitar obsessivamente o objeto, os seus temas costumeiros, ele consegue fazê-lo sempre de ângulo inusitado, capaz de recuar o conhecido para o fundo do quadro e lançar luz sobre um aspecto que passara despercebido e, sobretudo, de reconstruir a visão do todo a partir de detalhe, adequadamente extremado.

Veja-se, por exemplo, a sua análise do 5 de junho de 1821, quando Dom Pedro é obrigado a ceder diante da tropa paga. Como se sabe, o acontecimento é mais um de uma longa série de marchas e contramarchas que acabará resultando na constituição do Brasil político. Mas em vez de desenhar todo o contexto, Oliveiros o estiliza, põe o foco na disposição espacial dos atores e os retrata como se contivessem in nuce tudo o que viria a ser a tumultuada relação entre civis e militares na história brasileira. Ou o seu tratamento da Questão Militar, momento em que o Exército - e com ele, o Partido Fardado - se apresentaria pela primeira vez de corpo inteiro. O foco realça o ator, sua circunstância, sua potencialidade, e, ao fazer isso, reconstrói a hierarquia dos processos políticos comumente aceitos: a Questão Militar, a qual não se costuma levar na devida conta, deve ter atingido os pilares do Império mais profundamente do que a Abolição e a Questão Religiosa. Enquanto estas ficaram relativamente circunscritas no tempo, as determinações da Militar conheceriam grandes desdobramentos no futuro.

O prefigurado em 1821 aqui se explicita, transforma-se em padrão, permitindo ao analista fixar o que viria a ser o drama brasileiro do século XX: hajam sido os militares protagonistas da história ou instrumentos das elites civis, tivessem feito política no Exército ou a política do Exército (como na conhecida formulação de Góes Monteiro, retomada exaustivamente por Oliveiros), o fato é que em momentos de crise a "autoridade (civil) sempre cedeu de seu prestígio em face das imposições revolucionárias".

Segundo, porque ao longo do texto as boas perguntas são feitas e as heresias interpretativas se multiplicam. É este ou aquele processo, é a história política do país que está sendo interpelada, sem dúvida de um ângulo particular, quase idiossincrático, mas de maneira que - este é o ponto - atinge o todo e subverte-o. Afinal de contas, há alguma substância na pretensão de o Exército ser ou ter sido na República um Poder Moderador ou isso não passa de falsa consciência? As Forças Armadas foram instrumentos do Estado, parte dele, ou - na medida em que podem "interpretar" a Constituição e não apenas executá-la obedientes à autoridade legal - preexistem a ele, tutelam-no, são de fato um Poder Moderador e como tal, irresponsáveis em sentido hobbesiano? Mas como tal papel tutelar combinou com as alianças cambiantes entre Exército, União e Federação? Por outro lado, em que consiste a tradição jacobina e republicana do Exército brasileiro? Estará viva? Em país que jamais conheceu efetivas lutas políticas de classe, o âmago da problemática brasileira não residirá nessa estranha dialética entre o Estabelecimento Militar - a burocracia sem alma, a profissão no sentido weberiano - e o Partido Fardado - os políticos de vocação, as coteries originárias das Forças Armadas e das lideranças civis de classe média que em conjunturas críticas se lançam "heróica" e (e também catastroficamente!) à decisão soberana e à construção de uma direção política, de uma Grande Estratégia, contradição resolvida (provisória ou finalmente?) com a vitória do primeiro sobre o segundo em 1969?

Posto isso, podemos concordar ou rejeitar os argumentos, examinar os pressupostos e contestar os resultados da indagação de Oliveiros, mas não é possível ignorá-los. Mais além, basta o enunciado desses pontos para que o leitor perceba que estamos diante de intelectual dotado de uma interpretação do Brasil, o que, convenhamos, é raro hoje em dia.

Salvo engano, toda a construção intelectual e política de Oliveiros S. Ferreira repousa em uma hipótese: a de que tanto as classes sociais brasileiras não chegaram a se organizar plenamente (horizontal e verticalmente), como os partidos políticos civis que supostamente as representam jamais foram capazes de construir ou expressar algo que pudesse ser chamado de projeto nacional. Na sua linguagem, nenhum desses partidos e o conjunto deles representaram ou representam "interesses nacionais de classe consentâneos com o imenso Espaço do país". E se não representam, podem ser qualquer coisa, menos partidos políticos, suposto que "partido" é sempre combinação de máquina e programa, um bloco de forças que luta para implantar um projeto, moldar uma sociedade segundo uma perspectiva, uma visão de mundo.

Na verdade, segundo Oliveiros, é esta a peculiar "maldição" brasileira, cuja melhor formulação se deve a Oliveira Vianna. Ela não é um dado da natureza nem fruto de um juízo metafísico ou normativo. É o resultado de constatação empírica segundo a qual "era maldição nossa, brasileiros, não conseguirmos nos organizar autonomamente" - constatação que é o alfa e o ômega do entendimento do país e base a partir do qual é enfim possível formular uma política. Nessas circunstâncias, eis o corolário, "caberia ao Estado realizar as tarefas que deveriam ser das classes sociais". Até aí, e desde Oliveira Vianna, continuamos em um terreno razoavelmente mapeado. Mas o complicado - para nós - é que a história brasileira deu um passo além, o qual constitui o tema de fundo, a reflexão específica desse livro ousado: na ausência de uma "consciência nacional de classe", cabe ou coube ao Exército - ao Partido Fardado, mais do que ao Estabelecimento Militar - executar a "única política possível": usar o Estado, fazer com que ele organize as classes sociais e, até certo ponto, dar-lhes um projeto.

Ele teve êxito nesse empreendimento? De minha parte, diria que felizmente não, e chamaria a atenção para o fato de que a análise de Oliveiros é antes crispada, quase trágica, está longe de ser apologética ou maniqueísta - os resultados perversos dessa política, comandada ou degradada por uma visão "irracional" e "apocalíptica" do mundo e dos homens, aparecem com toda clareza no texto: depois de 1935, depois de 1945, depois de 1964 e especialmente depois de 1969. Como o diabo se esconde nos detalhes, é como se Oliveiros por um momento recuasse sobre seus próprios pés, hesitasse diante dos efeitos catastróficos da ação do sujeito que é o seu objeto privilegiado de análise. "O drama do Partido Fardado, que em certo sentido é o drama do Brasil, é que na defesa da Ordem - defesa levada à extremidade lógica, como se fora numa operação militar - ele cedeu, depois de 1935, à imagem que parte do mundo civil construiu do que seria a ameaça do comunismo ao 'orbe católico" e sua Ordem".

Mas se a análise parasse aí seria falsa, dado que unilateral. Seria conformista e entorpecente, sugerindo que contida a repressão e arrefecido o ódio, tudo se pacificaria. Ao contrário, o nó está em que duas décadas depois a questão de fundo permanece: a inédita experiência democrática que estamos vivendo não teve até agora consistência suficiente para contrarrestar ou desmentir aquela "maldição". Conseguirá algum dia? Nela não surgiu nenhum ator ou sujeito político que pudesse cumprir aquele papel, o do Revolucionário da Ordem, sem deixá-lo degradar à mera "defesa da ordem". Surgirá algum dia?

Salvo engano, a resposta de Oliveiros S. Ferreira não permite otimismo. É este dilema, esse drama que dá a esta reflexão sobre os Elos Perdidos da história política brasileira, a mais premente atualidade.


Notas

(1)Oliveiros S. Ferreira, Elos Partidos: uma nova visão do poder militar no Brasil. São Paulo: Editorial Harbra, 2007.
(*) Gildo Marçal Brandão é professor associado do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador do CEDEC - Centro de Estudos de Cultura Contemporânea.

 

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