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26 de agosto de 2007

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Cultura

Laboratório a céu aberto


Marco Aurélio Nogueira
Gramsci e o Brasil / La Insignia. Brasil, agosto de 2007.

 

Um simples vôo panorâmico pela imprensa da América Central e do Sul ou pela agenda de trabalhos e discussões de uma importante reunião acadêmica como o XXVI Congresso da Associação Latino-americana de Sociologia (Alas), realizado entre os dias 13 e 18 de agosto em Guadalajara, no México, deixa claro que esta área do mundo está em grande transformação.

Não se trata somente, nem sobretudo, de mudanças políticas ou trocas de governos e sistemas, ainda que estas também estejam a acontecer. Afinal, são muitos os países que afastaram as velhas elites até então donas de seus Estados e que respiram, hoje, um ar de renovação, num movimento que tem sugerido a firme impressão de uma guinada "à esquerda".

As mudanças mais fortes estão a ocorrer nas bases das sociedades e são elas que explicam o que se passa no plano político e governamental, ajudando a que se entendam o potencial e os limites das novas elites que chegaram e continuarão a chegar ao poder. Há dois macroprocessos se entrelaçando na região. O primeiro deles expressa a aceleração daquilo que se poderia chamar de "dissolução" das formas de vida tradicionais, uma espécie de derradeiro ajuste de contas com o passado colonial que condenou os diferentes países do subcontinente a um atraso crônico, marcado por arranjos quase primitivos de exploração, desigualdade e exclusão social. Veio desta condição, e também da desfaçatez com que os países mais ricos e poderosos dela se aproveitaram, o cenário que se descortina por onde quer se passe: massas miseráveis, não reconhecidas em sua dignidade, párias à margem da vida, pedintes, humilhados, subcidadãos.

Parte das rebeliões populares e das lutas de identidade a que se tem assistido na América do Sul - dos zapatistas mexicanos aos cocaleros bolivianos, dos sem-terra brasileiros aos piqueteros argentinos - tem que ver com esse quadro, dramaticamente atualizado pelos efeitos da globalização atual e das políticas de ajuste adotadas nos últimos anos. Tudo revela a contundência vulcânica (ainda que muitas vezes silenciosa) do que ocorre nas estruturas sociais.

O segundo processo, por sua vez, expressa a sintonia do subcontinente com o que se passa no mundo e na História mundial. Reflete a assimilação, pelas sociedades da região, das características da "nova" modernização que se articula com a globalização desenfreada do capitalismo e com o ingresso da humanidade numa fase declaradamente tecnológica. Representa a conversão das sociedades latino-americanas à era da informação, da mídia onipresente, da automação, da vida "líquida" e reflexiva - efêmera, participativa, perigosa, com menos centros de coordenação, poucos consensos e muita movimentação.

Parte das dificuldades que governantes, partidos e sistemas políticos têm tido para governar, definir e implementar suas políticas deve ser associada a isso. Num contexto em que o mercado pode tudo, ou quase tudo, em que a cultura neoliberal impregnou os poros sociais, em que a própria política virou mercadoria e espetáculo, por um lado, e está, por outro lado, submetida a múltiplos esforços de invenção e reformatação, em que indivíduos "soltos" celebram sua autonomia sem saber bem o que com ela fazer, neste contexto, como é evidente, governar, coordenar e organizar se tornaram operações de altíssimo custo e risco. Muito mais propensas a fracassos e decepções que a êxitos consagradores. Sempre mais estratégicas, mas cada vez mais complexas, turbulentas e difíceis.

O entrelaçamento desses dois macroprocessos produz inúmeros ruídos, atritos e acomodações. Sobredetermina o dinamismo que se manifesta em todo o subcontinente, potencializando suas contradições e dificuldades ao mesmo tempo que impulsiona suas possibilidades. A América do Sul funciona hoje como um laboratório a céu aberto, onde múltiplas experiências são tentadas, numa lógica de ensaio e erro, sem que se possa saber para onde tudo está a nos levar, ou seja, sem mecanismos eficientes de controle e previsão.

Como seria mesmo inevitável, a controvérsia prevalece sobre a unanimidade quando se trata de qualificar o quadro geral e muitas das situações particulares. Não por acaso, há hoje uma verdadeira batalha teórica e ideológica na região. Os novos governantes - de Chávez a Bachelet, passando por Lula e Evo Morales - são vistos, invariavelmente, pelo crivo da rejeição unilateral ou da adesão cega, em polarizações que às vezes beiram o fanatismo. Sobram adjetivos: populistas, autoritários, aventureiros, irresponsáveis, traidores, capitulacionistas, neoliberais, moderados, esquerdistas. Faltam análises mais objetivas, que trabalhem os fatos reais e os processos que correm nas profundezas estruturais e superem as esquematizações e os enquadramentos simplificados, quase sempre excessivamente subjetivos e ideológicos. A facilidade com que se estigmatiza politicamente este ou aquele governante não encontra correspondência em postulações de rigor analítico. Quase nunca, por exemplo, se consegue estabelecer consonância entre o que é "ser" de esquerda hoje e o que significa "agir" como esquerda. Passa-se o mesmo, obviamente, quando se olha para o centro e a direita, para neoliberais e conservadores. Há etiquetas e polêmicas demais, conhecimento de menos.

Enquanto não se conseguir compreender desde a essência histórico-estrutural os novos atores e procedimentos políticos que estão a se esparramar pelo subcontinente, embalados pela combinação cruzada daqueles dois macroprocessos, não haverá como avançar em termos de análise crítica. Continuar-se-á falando precariamente em duas ou três esquerdas, em direitas e centros imprecisos, a demonizar ou endeusar Chávez e Morales, Lula e Bachelet, sem que se chegue a uma consideração rigorosa do que está a ocorrer e, sobretudo, do que pode ser efetivamente produzido pelo laboratório sul-americano.

 

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