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5 de julho de 2005


Brasil

Vinte anos de democracia
ou um ciclo que se encerra


Caetano E.P. Araújo
Revista Política Democrática, nº 11. Brasil, julho de 2005.


Cumpriram-se, em março deste ano, 20 anos da posse de José Sarney na Presidência da República, marco indiscutível da retomada da democracia no país. A imprensa comemorou a data, com a rememoração dos fatos e sua análise, dando especial atenção à comoção que cercou o período de doença e morte do presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves.

A data exige efetivamente comemoração. Afinal, são 20 anos de normalidade democrática, de liberdade, transparência, participação e garantia dos direitos do cidadão, em condições nunca antes experimentadas pelos brasileiros. Nosso recorde anterior, excluído o regime de partido único, voto restrito e fraude eleitoral sistemática que conhecemos como República Velha, situava-se no interregno democrático de 1946-1964, que durou apenas 18 anos. Mesmo esse período não pode ser comparado aos dias de hoje em termos de extensão e consolidação da democracia.

Entretanto, além da comemoração, é bem-vinda também a reflexão sobre a trajetória do país nessas duas décadas; os avanços alcançados; a convivência de problemas antigos e persistentes que nos afligem com as novas questões que se apresentam; a agenda das mudanças com que o novo século sinaliza; as alternativas disponíveis; e a capacidade de o conjunto dos partidos políticos tomar consciência dessa agenda, refletir sobre ela, para formular e oferecer à sociedade um leque de respostas conseqüente com suas posições.

Sabemos que 1985 não foi um momento súbito, um raio no céu azul, mas o resultado de um processo longo de desgaste das bases do regime autoritário e de acumulação de forças da oposição. A opção pelo enfrentamento com o regime no terreno institucional, com o recurso ao voto, à organização e manifestação populares, à ocupação e ampliação de qualquer espaço de legalidade residual, assim como a definição das bandeiras políticas correspondentes - anistia, eleições diretas e assembléia constituinte - havia sido formulada, logo depois do golpe militar, nos embates duros havidos no campo da esquerda. Papel importante, embora não exclusivo, coube então, nessa formulação, ao Partido Comunista Brasileiro.

Muito mais importante que sua gênese, no entanto, do ponto de vista da eficácia dessa política, foi a aceitação desse rumo, primeiro pelo MDB, o partido legal de oposição, depois pelos diferentes movimentos sociais e finalmente, por todas as levas de dissidentes do regime que foram, sucessivamente, somando forças à oposição, até a formação da Aliança Democrática, já nas vésperas do embate no Colégio Eleitoral.

Marcos nesse processo foram as eleições legislativas de 1974 e 1978, as anticandidaturas do MDB à Presidência da República, a anistia e as eleições de 1982, com a chegada da oposição ao governo de estados importantes, econômica e demograficamente. Como resultado final desse longo embate, assume, em 1985, o governo Sarney, expressão fiel da ampla coalizão que se gestara nos anos de resistência. Sua tarefa não era fácil. Além de carregar o peso da frustração popular causada pela morte do presidente Tancredo Neves, tinha pela frente uma complexa agenda de problemas políticos, econômicos e sociais.

Antes de analisar essa agenda, é preciso assinalar o fato, pouco lembrado, de que o momento que antecedeu à eleição de Tancredo e Sarney marca a constituição de uma aliança política que não se esgotaria na transição à democracia, mas que iria governar o país nas duas décadas seguintes. A reunião da maior parte das forças políticas engajadas na resistência com a dissidência liberal do regime sustentaria, na verdade, tanto o governo Sarney quanto os governos posteriores. As diferenças, que parecem significativas quando a análise parte dos resultados das eleições presidenciais, apequenam-se quando o critério passa a ser a base de apoio do governo no Legislativo.

O governo Sarney sustenta-se claramente na aliança formalizada pelos dois maiores partidos de então: o PMDB e o PFL. É possível detectar, a partir da manutenção do Ministério Tancredo, da influência de Ulysses Guimarães e da entrega da gerência da economia a especialistas do PMDB, a vigência, nesse período, da hegemonia desse partido na coalizão. Fora do governo restaram os derradeiros apoiadores do regime militar e o Partido dos Trabalhadores, que apresentou então a primeira versão de uma postura de "grande recusa" do momento político: não ao Colégio Eleitoral, não ao governo e, quase, não à nova Constituição. A intenção de não assinar a Carta pareceu, por algum tempo, definitiva.

O governo Collor implicou, num primeiro momento, um ensaio de ruptura política com esse bloco no poder. Tratava-se, afinal, de liderança carismática típica, com vínculos partidários frágeis, mas que não poderia, contudo, prescindir de uma base sólida de apoio parlamentar. O PFL alinhou-se com firmeza e rapidez ao novo governo, partes do PMDB concederam seu apoio, e mesmo o PSDB cogitou dessa possibilidade. Se houvesse perdurado, o governo Collor, com grande probabilidade, teria repetido a frente, dessa vez sob a hegemonia do PFL. No entanto, a crise acometeu e derrubou o governo. Com a chegada de Itamar ao poder, a antiga frente se recompôs com facilidade. Permaneceu de fora apenas o PT, em uma nova versão de sua política de recusa. O papel destacado de Fernando Henrique Cardoso no ministério, particularmente na condução do Plano Real, marcou o início da hegemonia do PSDB no interior da mesma coalizão que prosseguiu governando o país. Candidato da continuidade, Fernando Henrique Cardoso formalizou de imediato a aliança entre PSDB e PFL.

Concorreram coligados às eleições de 1994 e 1998 e coligados governaram o país nesses dois mandatos presidenciais. A essa altura, o PMDB já assumira a feição atual de federação de lideranças regionais e, nessa condição, dividia-se entre a participação no governo e a oposição. Os remanescentes políticos do regime militar haviam também diluído sua identidade ideológica - autoritária, conservadora, de "direita" - e, sob o novo rótulo de "atraso", sustentavam agora o governo, liderados pela moderna vanguarda tucana.

Em 2002, esse ciclo encontra fim, não com a constituição de um bloco alternativo, mas com a substituição da elite política dirigente da coalizão anterior. A assunção do PT à Presidência implicou apenas, em termos de nomes e compromissos imediatos, a troca de postos na "gerência do atraso", nas palavras recentes de Fernando Henrique Cardoso. Permaneceram, para o novo governo, portanto, os mesmos limites políticos que essa base impunha ao governo anterior.

Qual o legado desse ciclo? Que deixa ao país, depois de 20 anos de poder, a composição política que marcou o fim do regime autoritário no Brasil?

Em termos econômicos, é preciso reconhecer os avanços significativos havidos, sem calar sobre os riscos presentes e o quanto resta por alcançar. A Aliança Democrática assume num momento em que a crise do modelo anterior, de crescimento autárquico, sob a regência do Estado, fundado na substituição de importações, já havia esgotado suas possibilidades. Em longa crise terminal, não reeditava há vários anos as altas taxas de crescimento que haviam sido "normais" até o fim da década de 1970. Restavam a inflação galopante e a estagnação persistente, que, combinadas, produziam o agravamento constante da exclusão e da desigualdade sociais características daquele modelo. O velho já havia morrido, mas sua inércia pesava, poderosa, sobre o país. Os planos de estabilização do governo Sarney, após o sucesso inicial do Cruzado, fracassaram, como sabemos, e o mandato terminou com a pior hiperinflação de nossa história. No entanto, propiciaram a experiência necessária e, portanto, fundaram as bases para a estabilidade posteriormente conseguida. Há continuidade evidente, de idéias e de operadores, entre o Cruzado e o Real.

O breve governo Collor ficou marcado pela, igualmente fracassada, heterodoxia do confisco da renda nacional. No entanto, de conseqüências mais duradouras foi o início da abertura econômica para o mundo. A redução progressiva das tarifas alfandegárias, conforme calendário anunciado, foi o primeiro passo para a saída da autarquia, além de condição adicional da estabilidade futura.

A estabilidade econômica viria, finalmente, no governo Itamar e seu sucesso pavimentou o caminho para os 8 anos seguintes, de hegemonia tucana. Com ela, a economia mudou de patamar, antigos problemas passaram a ser resolvidos e novas vulnerabilidades apareceram. Houve equívocos, dos quais o mais grave talvez tenha sido a acomodação na âncora cambial, com suas conseqüências nefastas em termos da dívida pública. Houve turbulência externa, que, em mais de uma ocasião, deixou patente a vulnerabilidade a que o país havia chegado depois de patinar por quase duas décadas na inércia do modelo anterior. Mas o fato concreto é que um novo ciclo de crescimento sustentado passou a ser possível. Essa mudança qualitativa não foi percebida de imediato pela oposição petista, que praticou, no calor da campanha, mais uma vez, o exercício da recusa.

Em termos sociais, o legado não é tão brilhante. É verdade que a nova Constituição consagrou conquistas inéditas nessa área. Contudo, é verdade também, que essas conquistas no plano normativo pouco significaram em termos de melhora da qualidade de vida da população. A pobreza de dimensões continentais do Brasil e o abismo que separa pobres de ricos e remediados alteraram-se de forma perceptível apenas uma vez, com o fim da inflação. A desigualdade social logo encontrou um novo ponto de equilíbrio e nele persiste até hoje.

Aprendemos que o simples crescimento não é suficiente para eliminar a pobreza e a desigualdade. Afinal, crescemos muito, durante muito tempo, aumentando sempre o número de pobres. Sabemos também que nosso problema não reside no montante dos chamados gastos sociais, uma vez que o Estado brasileiro gasta muito, há muito tempo, nessa área, sem resultados de monta. Sabemos, igualmente, a partir da experiência internacional, que a receita do sucesso passa por uma ação firme do Estado no sentido da distribuição da propriedade, principalmente na distribuição de terra, crédito e conhecimento.

Nessa perspectiva, os anos de governo da Aliança Democrática, sob suas diferentes hegemonias, não mostraram a competência desejada. A questão da reforma agrária foi enfrentada pelo governo Sarney, gargalos legais foram identificados e removidos no governo Itamar. No governo Fernando Henrique Cardoso, as condições estavam, portanto, maduras para uma reforma de grandes proporções. A estabilidade havia provocado queda nos preços da terra e os trâmites legais estavam simplificados. Houve, como resultado, o maior processo de desapropriação de terras ocorrido no país e o assentamento de centenas de milhares de famílias, um número que superou tudo o que havia sido feito nos 30 anos anteriores.

No entanto, apesar de sua magnitude, esse processo não trouxe os resultados esperados em termos de incremento da renda e das condições de vida dessa população. Os assentados não se transformaram em pequenos agronegociantes e tenderam, pelo contrário, a perpetuar sua condição, de dependentes do Estado, inclusive no aspecto financeiro.

Esse processo deixou claro que, ao contrário do que prevalecia nos anos de 1960, a terra e a enxada não são suficientes hoje; e, mais ainda, que o trabalho de capacitação do agricultor, nas condições da moderna agricultura, passou a ser fundamental. Para implementá-lo, para tornar os assentados autônomos, resistências terão que ser quebradas, principalmente aquelas postas pelos movimentos sociais envolvidos com a questão. A distribuição de conhecimento, a universalização de educação pública de qualidade, mostrou avanços maiores.

Afinal, a oferta do primeiro grau a toda criança em idade escolar foi atingida. No entanto, também aqui o sucesso quantitativo deixa na sombra a estagnação qualitativa. Muitas dessas crianças na escola não aprendem a ler e arrastam-se pelas séries no dobro do tempo previsto. O segundo grau, por seu turno, pressionado pela demanda maior dos egressos do primeiro grau, ainda não se amplia na proporção necessária. Finalmente, o ensino superior público debate-se numa crise profunda, marcada pelo engessamento da gestão das universidades e sua capitulação face ao corporativismo de docentes, funcionários e estudantes. O horizonte que nos deve guiar nessa questão - a universalização imediata do ensino secundário e a expansão acelerada do ensino superior, até a universalização do acesso - está longe. Nesses dois indicadores somos superados não apenas pelos países europeus, norte-americanos e do Leste Asiático, mas também por muitos de nossos vizinhos da América Latina.

Finalmente, a distribuição do crédito, no montante necessário, em condições favorecidas, à clientela de baixa renda, não consegue sair das intenções. É claro que esse ponto, assim como o spread abusivo que aqui vigora, guarda relação direta com a oligopolização do sistema bancário. Poucos e grandes bancos detêm o monopólio do crédito e não há pressão de mercado capaz de obrigá-los a emprestar mais, a juros menores.

No front da política, o panorama é ambíguo. Houve, inegavelmente, progresso gigantesco. A universalização do direito de voto, a livre organização partidária, a garantia da transparência, a manutenção de instituições voltadas para a vigilância dos cidadãos sobre o poder público, tudo são "novidades" da Constituição de 1988.

Nessa direção, não é possível subestimar a importância da adoção do voto eletrônico e suas conseqüências na prevenção da fraude eleitoral e do voto de cabresto, que imperavam em grande número de municípios.

Não se trata de negar essas conquistas. Mas é preciso reconhecer que, apesar delas, ou até por causa delas, a crise ronda a política brasileira. Temos, em primeiro lugar, uma evidente crise de legitimidade. O descrédito da política é confirmado por toda pesquisa de opinião, dos anos 1980 até hoje. Esse descrédito atinge, particularmente, os membros dos poderes legislativos, e não parece refluir com os ganhos educacionais acima assinalados.

A legitimidade do sistema é atingida pelos processos costumeiros de financiamento de campanhas eleitorais, pela inconseqüência do voto do eleitor e, finalmente, pelas negociações envolvidas nos mecanismos de formação de bases de apoio parlamentar aos diferentes governos. É claro que essas três dimensões do problema estão conectadas. Nosso primeiro grande escândalo de financiamento de campanha foi o rumoroso caso que terminou com o impedimento do presidente Collor. Ficamos a saber que as campanhas eleitorais custavam milhões de dólares e que contribuições para essa finalidade eram achacadas de todos os pesos pesados do PIB brasileiro.

Logo depois, houve o caso da CPI do orçamento, que nos ensinou que boa parte da votação da peça orçamentária de cada ano sofria pressões externas, em troca de contribuições ocultas a parlamentares, contribuições destinadas, aparentemente, ao financiamento de suas futuras campanhas. A inconseqüência do voto fica patente ao término de cada eleição. Um terço dos deputados federais, em média, troca de partido nessa ocasião, em geral na direção da coligação governista. Isso pode significar que, a cada pleito, mais da metade dos eleitores que vota oposição está elegendo, na verdade, futuros situacionistas. Em nosso sistema de voto proporcional de listas abertas, o representante julga-se legitimado pela eleição e não considera necessário prestar contas a seus eleitores nem aos eleitores de seus companheiros, não eleitos, de chapa que, afinal de contas, o elegeram.

Sobre os métodos empregados para a formação da maioria parlamentar, sucedem-se as denúncias, da reeleição de Fernando Henrique Cardoso ao affair Waldomiro Diniz. Num sistema em que a negociação não pode ser feita com partidos fracos, mas com parlamentares individualmente, a cesta de moedas em jogo amplia-se e resvala, muitas vezes, para os limites da legalidade. Ouvimos e lemos na imprensa boatos, nunca confirmados, sobre nomeação de cargos, liberação de emendas, repasse de recursos de campanha e até, de concessão de ajudas de custo aos representantes do povo.

Com isso, chegamos à situação paradoxal haver recursos suficientes para o presidente eleito, quem quer que seja ele, construir maioria na Câmara e no Senado. No entanto, quanto maior o ganho em governabilidade, maiores as perdas em legitimidade.

Não nos encontramos numa situação em que o sistema político funciona com doses residuais e dispensáveis de lesões à legitimidade, seja na forma grave de corrupção, seja em modalidades limítrofes e atenuadas. Funcionam dessa maneira países que apresentam escândalos políticos esporádicos. Nossa situação lembra mais a da Itália, antes da crise do início dos anos 1990, que destruiu o sistema partidário que governara o país nas quatro décadas anteriores. Ali, a conexão com os recursos do crime organizado, estrutural e indispensável ao funcionamento do sistema, minava constantemente a legitimidade da política.

Esse o quadro em que se processou a eleição de 2002. A vitória do Partido dos Trabalhadores significou, como vimos, a recomposição da base de apoio do governo anterior, com a substituição de tucanos e liberais por petistas. No que se refere à agenda do governo, a continuidade prevaleceu claramente sobre a ruptura. A política da recusa incondicional, da oposição fechada e completa, cedeu lugar, num processo rápido e carente de discussão interna, a uma agenda menos propositiva e mais pragmática.

Na economia, a continuidade e aceleração das políticas anteriores evitaram a crise que se avizinhava, produto, em grande medida, do temor que a agenda anterior do Partido dos Trabalhadores provocava. Com isso, houve avanço em termos de estabilidade, redução de vulnerabilidades e, em alguma medida, também de crescimento. Persistem, é claro, gargalos importantes a exigir enfrentamento, dos quais o mais importante talvez seja a manutenção de taxas de juros extremamente elevadas.

No plano social, a estagnação ameaça tornar-se retrocesso. O esforço nas áreas de reforma agrária, educação e disseminação do crédito parece haver sido interrompido e surgem, em primeiro plano, as políticas de compensação de renda, ou seja, as diversas bolsas distribuídas às famílias carentes.

No plano político, o novo governo persistiu na política de negociação de sua maioria caso a caso, parlamentar a parlamentar, tal como fizera o governo anterior. Mais uma vez, assistimos ao mergulho do governo na ilusão de promover a mudança com o apoio dos que não a desejam. Esse processo de negociações, no entanto, não é estacionário, tem dinâmica própria, e tende a intensificar-se com rapidez. A opção com que se defronta hoje o governo do PT é clara: ou aposta na reforma política, e, com ela, na possibilidade de construir a governabilidade sobre partidos, ou seja, sobre alianças programáticas, ou atende ao reclamo de boa parte de sua base atual e continua no varejo das negociações personalizadas. Até o momento, o governo tem optado por sua base e, conseqüentemente, capitulado em relação à proposta de reforma política que historicamente defendeu.


(*) Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília - UnB e consultor legislativo do Senado Federal - caetano@senado.gov.br



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