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La insignia
14 de janeiro de 2005


O caso raro de uma planta sempre-florida


Felipe A. P. L. Costa (*)
La Insignia. Brasil, janeiro de 2005.


Floração é um evento esporádico no ciclo de vida das plantas, quase sempre restrito a um ou outro episódio bem-definido ao longo do tempo. Ainda são bastante raros na literatura botânica os registros de espécies que estão permanentemente floridas - a chamada floração contínua. Até onde sei, o comportamento de floração do braço-de-preguiça foi o primeiro caso registrado de floração contínua para uma espécie de árvore brasileira, envolvendo a produção ininterrupta de flores (de curta duração) por inflorescências (de longa duração).

Floração é um evento tipicamente esporádico no ciclo de vida das plantas, quase sempre restrito a episódios anuais (uma ou mais vezes ao longo do ano) ou supranuais (quando ocorre a intervalos superiores a um ano). A fenologia das plantas que vivem em hábitats sujeitos a oscilações sazonais - um verão quente e chuvoso, digamos, seguido por um inverno frio e seco - varia de acordo com as estações, de tal modo que as atividades vegetativas (e.g., produção de folhas) e reprodutivas (e.g., produção de flores) tendem a ocorrer em épocas distintas. Em florestas tropicais sujeitas a um regime sazonal de chuvas, por exemplo, muitas espécies do dossel e da submata produzem flores no início da estação seca; já em localidades com um regime de chuvas constante ou irregular, a floração pouco ou nada tem a ver com a precipitação, a exemplo do que ocorre com a produção foliar [1].

Entre as espécies com caulifloria ou floração axilar, a produção de flores é relativamente independente da produção de folhas; todavia, nas espécies com floração terminal, as gemas apicais sempre estão ocupadas, ou produzindo folhas ou produzindo flores [2]. É isso o que ocorre com espécies do gênero Solanum (batata, berinjela, braço-de-preguiça, jiló, joá, jurubeba, lobeira etc.). Nessas espécies, o padrão geral de crescimento envolve rápidas alternâncias entre fases vegetativas e reprodutivas, interrompidas apenas nas épocas mais desfavoráveis do ano. Nas épocas favoráveis, a planta cresce pelo acúmulo de unidades simpodiais, cada qual formada por uma, duas ou mais folhas, dependendo da espécie, e uma inflorescência. Como a produção de inflorescências tende a suceder os períodos de maior produção foliar, quanto mais depressa a planta cresce, mais curto se torna o intervalo entre florações sucessivas.

No braço-de-preguiça (Solanum cernuum), a primeira inflorescência normalmente surge quando os indivíduos alcançam 1,5-2 m de altura e se ramificam pela primeira vez. A partir de então, a quantidade de inflorescências presentes aumenta em proporção direta à quantidade de ramos produzidos. Uma árvore com uma copa grande e ramificada pode sustentar ao mesmo tempo inúmeras inflorescências [3]. Cada inflorescência é formada por 4-10 raques pendentes e densamente pilosas; as flores novas surgem (uma de cada vez) na extremidade distal das raques. As flores são brancas e hermafroditas e vão se dispondo em ziguezague, formando duas fileiras próximas e paralelas ao longo da raque. O cálice é piloso e persistente, envolvendo mais ou menos metade do fruto maduro, que tem cerca de 1,5 cm de diâmetro. Os frutos ficam escondidos, voltados para o interior da inflorescência. As flores são visitadas por abelhas coletoras de pólen (flores de Solanum não produzem néctar) e os frutos são comidos por morcegos.

No campo, me habituei a encontrar braços-de-preguiça sustentando várias inflorescências, em qualquer época do ano, mas desconhecia se tais estruturas permaneciam ou não funcionais até cair. Se, por um lado, tornou-se óbvio que a planta podia reter inflorescências por vários meses; por outro, eu não sabia se a produção de flores era ou não interrompida em alguma época do ano, particularmente no inverno. Estudos anteriores haviam revelado que as taxas de natalidade e mortalidade das folhas dessa planta oscilam ao longo do ano, produzindo alterações significativas no tamanho e na estrutura etária da população de folhas [4]. Levando em conta esses resultados, seria esperado que uma eventual interrupção na floração ocorresse em meados do inverno, justamente quando as atividades vegetativas alcançam seu nível mais baixo (embora não chegue a haver uma suspensão no crescimento vegetativo). Caberia investigar, portanto, se a floração do braço-de-preguiça seria um caso real ou apenas aparente de floração contínua [5].


Procedimentos

Os resultados que comento a seguir foram obtidos por "vias tortas". Explico: em dezembro de 1994, as biólogas Marinês Eiterer e Rita de Cássia Almeida-Lafetá deram início a um programa de pesquisa sobre a biologia reprodutiva do braço-de-preguiça. A princípio, as duas não estavam diretamente interessadas em investigar a hipótese de floração permanente; o interesse delas estava mais voltado para outras questões, como a ocorrência de dimorfismo floral, tempo de vida das flores, viabilidade dos grãos de pólen, visitantes florais etc. Essas investigações preliminares produziram resultados promissores. Revelaram, por exemplo, que o tempo de vida de flores individuais é relativamente curto (4-5 dias). E mais: nos 2 dias em que a flor permanece aberta, a quantidade de grãos de pólen nas anteras aumenta até alcançar um valor máximo no início do segundo dia. Nesse período, o percentual de grãos viáveis permanece elevado (mais de 50 por cento). Por fim, revelaram que, mesmo após a queda da corola, o estigma permanece funcional e receptivo por vários dias.

Após essa primeira fase, as duas decidiram então iniciar investigações mais prolongadas sobre o comportamento reprodutivo do braço-de-preguiça. Em março de 1995, elas começaram a acompanhar um indivíduo adulto (4 m de altura), que estava crescendo na Reserva Biológica do Poço D'Anta, em Juiz de Fora (MG). Entre algumas dezenas de inflorescências, muitas altas e fora do alcance das mãos, elas escolheram um grupo de 10, todas novas e pequenas. Essas inflorescências foram marcadas e acompanhadas sob dois tratamentos: oito raques de cinco inflorescências foram ensacadas (grupo ENSACADO) e 11 raques, de outras cinco inflorescências, permaneceram como estavam (grupo CONTROLE). Em visitas sucessivas, entre abril e agosto de 1995, quando o trabalho de campo teve de ser interrompido, as duas pesquisadoras observaram e registraram o número de flores e frutos produzidos por cada uma dessas raques.

Embora eu tenha acompanhado os trabalhos desde o início, só mais tarde foi que me tornei um participante mais efetivo do estudo, particularmente interessado na hipótese de floração contínua [6]. Sugeri, por exemplo, que investigássemos a relação entre o comprimento e o número de flores produzidas pelas raques, já que essas gradativamente crescem com o tempo. Para isso, utilizamos raques de inflorescências perdidas por um outro indivíduo, crescendo fora da reserva, mas de tamanho comparável ao nosso indivíduo focal. Também verificamos se as flutuações registradas na produtividade floral (número de flores produzidas por raque por dia) oscilaram de acordo com a precipitação pluvial, a exemplo do que já se sabia que ocorre com a produtividade foliar.


Resultados obtidos e a hipótese de floração contínua

As 19 raques produziram um total de 227 flores. A quantidade de flores produzidas variou de acordo com o número de raques presentes nos dois tratamentos, indicando que o ensacamento não prejudicou o comportamento de floração. No cômputo geral, a produção média para o período foi de 11,9 flores por raque (variando de 8 a 17 flores). Houve, todavia, diferença significativa na quantidade de frutos produzidos pelas flores dos dois grupos, pois o percentual de frutificação foi muito menor entre as raques do grupo ENSACADO do que no grupo CONTROLE, provavelmente porque o ensacamento excluiu virtualmente todos os visitantes florais. Assim, enquanto entre as raques do CONTROLE o percentual médio de frutificação foi de 39,4% (variando de 11 a 60%), com uma produção média de 4,3 frutos por raque, para o grupo ENSACADO, o percentual de frutificação foi de apenas 8,5% (variando de 0 a 22%). Os dados obtidos, no entanto, não permitem determinar se ocorreu polinização dentro dos sacos (se as flores são autocompatíveis ou se houve contaminação com o pólen de flores mais velhas, por exemplo) ou os frutos do braço-de-preguiça também podem ser formados sem fertilização, como ocorre em outras espécies vegetais.

Uma trajetória oscilante, mas claramente decrescente, indica que a produtividade floral diminuiu com a chegada do inverno, embora os números não apontem para uma interrupção da floração. Na verdade, com o fim da seca e a chegada das chuvas (agosto/setembro), os números devem inverter essa trajetória, adotando a partir de então uma tendência ascendente. (O estudo de campo foi interrompido em meados de agosto, mas a planta continuou florida.)

No período estudado, a produtividade diminuiu de 0,178 (abril) para 0,061 (agosto) flor/raque/dia, de tal modo que o intervalo médio para uma raque produzir uma flor aumentou de 5,6 para 16,4 dias, respectivamente [7]. Nesse sentido, podemos especular que cerca de 17 raques (digamos, 3-4 inflorescências, cada uma com 5-6 raques) já seriam suficientes para um braço-de-preguiça produzir ao menos 1 flor/dia durante todo o ano. Além disso, se a razão flor/fruto permanecer constante e igual a 0,392 (média registrada para as raques do grupo controle), um braço-de-preguiça com 42 raques (16,4 / 0,392) seria então grande o suficiente para produzir ao menos 1 fruto/dia ao longo de todo o ano. Essas inferências, claro, precisam ser testadas por um estudo populacional próprio.

Grande parte da variação registrada na trajetória da produtividade floral pôde ser atribuída à precipitação pluvial, de acordo com análises envolvendo a relação entre a produtividade e a precipitação acumulada nos dias imediatamente anteriores. Esses resultados são semelhantes aos que foram obtidos no estudo sobre a demografia foliar e indicam que tanto o crescimento vegetativo quanto o crescimento reprodutivo respondem a um mesmo fator abiótico. Nesse caso, a disponibilidade de água poderia afetar as atividades reprodutivas do braço-de-preguiça de duas maneiras distintas, mas complementares: primeiro, determinando a produção de novas inflorescências, à medida que a planta cresce e se ramifica; e, segundo, influenciando a produtividade floral das inflorescências presentes.

Raques maiores produziram efetivamente mais flores, como revelou um teste estatístico que comparou o comprimento das raques com o número de flores produzidas por cada uma delas. Testes suplementares revelaram que o tamanho das flores não variou com o número de flores produzidas, nem com o comprimento da raque. Isso indica que as raques das inflorescências do braço-de-preguiça suportam mais flores aumentando em comprimento e não simplesmente produzindo flores cada vez menores.

Afinal, por quanto tempo uma raque persiste? Os dados não respondem diretamente a esta questão, mas podem nos dizer alguma coisa sobre a longevidade das raques. A longevidade de uma raque pode ser definida como a soma dos intervalos de tempo necessários para produzir uma série de flores individuais. Empregando o intervalo médio mais curto que as raques precisaram para produzir uma flor (5,6 dias), é possível estimar o tempo de duração da maior raque coletada (com 57 cicatrizes florais) em aproximadamente 319 dias (5,6 * 57). Raques maiores já foram vistas no campo; ao que parece, portanto, essa seria uma estimativa conservadora para o tempo de vida máximo das inflorescências.

Vários padrões de floração já foram registrados entre as angiospermas; todavia, poucas espécies são conhecidas nas quais os indivíduos continuamente produzem e/ou sustentam flores e frutos [8]. Podemos concluir afirmando que indivíduos de grande porte do braço-de-preguiça sustentam inflorescências potencialmente funcionais durante o ano inteiro. Além disso, a produtividade floral desses indivíduos parece variar com a disponibilidade de água, de duas maneiras: (1) por meio da produção de novas inflorescências, à medida que os ramos crescem; e (2) por meio da produção de novas flores pelas inflorescências já presentes. O tamanho amostral mínimo restringe a força das conclusões, mas não impede que se chame atenção para essa provocante novidade: até onde sei, o comportamento de floração do braço-de-preguiça foi o primeiro caso registrado de floração contínua para uma espécie de árvore brasileira, envolvendo a produção ininterrupta de flores de curta duração por inflorescências que permanecem funcionais por vários meses.


Notas

(*) Biólogo meiterer@hotmail.com, autor do livro ECOLOGIA, EVOLUÇÃO & O VALOR DAS PEQUENAS COISAS (2003).
1. Ver artigo "Fenologia de árvores tropicais" http://www.lainsignia.org/2002/diciembre/dial_005.htm
2. Para detalhes sobre os diferentes tipos de floração, ver Bell, A. D. 1991. Plant form. Oxford, Oxford University Press.
3. Com uma copa de ramos pilosos, todos eles cobertos por folhas discolores (verdes por cima e esbranquiçadas por baixo) e uma porção de inflorescências pendentes e pilosas, um indivíduo de grande porte adquire, nas palavras de um antigo vizinho, um aspecto "lúgubre".
4. Ver artigo "Demografia foliar: contando folhas no braço-de-preguiça" http://wwwlainsignia.org/2004/diciembre/ecol_004.htm
5. Uma planta pode estar permanentemente florida produzindo sucessivas gerações tanto de flores de vida curta como de vida longa. Para uma classificação da fenologia reprodutiva de árvores tropicais, ver Newstrom, L. E.; Frankie, G. W. & Baker, H. G. 1994. A new classification for plant phenology based on flowering patterns in lowland tropical rain forest trees at La Selva, Costa Rica. Biotropica 26: 141-159.
6. Almeida-Lafetá, R. C.; Eiterer, M. & Costa, F. A. P. L. 1996. A floração permanente de Solanum cernuum Vell. (Solanaceae). In: SBB. Resumos do XLVII Congresso Nacional de Botânica, p. 412. Nova Friburgo, Sociedade Brasileira de Botânica, 545 p.
7. O intervalo de tempo que uma raque leva para produzir uma flor corresponde ao inverso de sua produtividade. No período estudado, esse intervalo variou de 5,6 dias (= 1 / 0,178), em abril, a 16,4 dias (= 1 / 0,061), em agosto.
8. Para um exemplo, ver Wolfe, L. M. & Burns, J. L. 2001. Influence of continuous flowering on offspring production and quality in a sexually dimorphic plant. American Journal of Botany 88: 1419-1423.



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