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30 de maio de 2004 |
Urariano Mota
Maio deveria ser o mais triste dos meses para os brasileiros. Assim pensei em começar este artigo. Depois de mudar e riscar, pensei em começá-lo com uma pergunta: "Quem dá mais por um artista feito no rigor da arte, sem introdução e sem segunda parte, que expressa três terços de todo brasileiro?". Depois me ocorreu que bem melhor seria uma crônica em feitio de oração, com humor, para suportar a paixão, com harmonia, ritmo... Mas depois vi que esses começos, essa crônica, tudo que eu tentasse era ridículo e medíocre. Porque eu queria simplesmente dizer: Maio deveria ser o mais triste dos meses porque nesse mês faleceu Noel Rosa. E isto ninguém mais nota. E ninguém dá mais por isto, ninguém dá mais um mil réis por isto, e isto é triste, e isto é de um cômico que zomba, porque Noel foi e é o maior compositor de música popular brasileira. Está visto, portanto, que todo começo, mal começasse, começaria mal. Porque
PELA DÉCIMA VEZ
Jurei não mais amar
GAGO APAIXONADO
Mu-mu-mu mulher
Ao nascer, foi arrancado a fórceps, o que lhe afundou o maxilar inferior e lhe deixou paralisado o lado direito do rosto. Esse foi um defeito que se tornou pior ao longo dos anos, porque se agravou depois de duas cirurgias. Na escola, a crueldade das outras crianças o apelidou de "Queixinho". Isto ocorreu até o dia em que descobriu o bandolim, e então, segundo suas palavras mais tarde: "A menina do lado cravava em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia completamente importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos de garoto que começava a espiar a vida". Naturalmente, o escudo do bandolim, e do violão depois, era pouco. Quando o queriam elevar, além do plano puramente físico, diziam que apesar de feio, baixinho e magro, a sua inteligência e sambas conquistavam mulheres. Se alguma vez ouviu semelhante elevação, Noel deve ter sorrido com amargura. Porque
DAMA DO CABARÉ
Foi num cabaré da Lapa, que eu conheci você
Em frente à porta um bom carro nos esperava
Eu não sei bem se chorei no momento em que lia
Pois sim. Em outra elevação se diz que Noel transformava a sua vida em samba. Isto consola. Nós, como todo filisteu, como todo bom pequeno-burguês, adoramos um artista sofrido, machucado, que cante para nós a sua dor. (Há uma foto de mulher, há uma foto de uma feiticeira, há uma foto da Dama do Cabaré que deve ter tantalizado Noel. Imaginamos o que ela escreveu no verso da imagem, se alguma vez lhe deixou alguma foto: "Como prova de amizade, Ceci".) Então se diz que ele transformava a vida em samba, mas não se esquece que nos intervalos da arte Noel evitava comer na frente dos admiradores. O queixo danificado mortificava-o, o seu mastigar era um espetáculo de animal de zoo. E por isso nas noites em claro, de brutas farras, alimentava-se apenas de caldos, de comidas leves, combinados a muitos e muitos e muitos cigarros, que deviam tornar um homem, acreditava-se, um ser de aparência bonita. Ele, que já havia sido chamado, num duelo de sambas, de O Frankestein da Vila. Mas com um cigarro permanentemente nos lábios até um monstro se recompunha. Acreditava-se. Não riam, porque dessa dieta alimentar, estilo de vida e hábito sobrevieram ao nobre artista: febre, hemoptise, pulmões podres. Um gênio arrebentado em plena criação e juventude. Que se vai, aos 26 anos, no dia 4 de maio de 1937. Meio trágico, não? Pois sim, esse mesmo Noel que foi chamado de Frankestein pelo sambista Wilson Batista num momento de raiva (e como são sinceros esses momentos de raiva), esse mesmo Noel tuberculoso, raquítico, é o homem que diz em uma entrevista à revista O Cruzeiro, ao lhe ser perguntado que relação existiria entre o amor e a música: "Romeu e Julieta morreram ignorando essa relação. Acho, porém, que a relação seja a mesma que existe entre a casca de banana e o tombo, num escorregão". É esse homem que tosse e escarra sangue o mesmo que numa madrugada, ao nascer o dia, é reconhecido por amigos músicos que voltavam de automóvel, de uma festa. Conta-se que seu perfil, em um poste à espera do bonde, se destacava pela negação: terno branco à procura de um corpo, rosto que descia à procura de um queixo. Então os amigos param o carro e mandam-no embarcar. Ele entra e vai pedindo:
- Me sirvam um conhaque. É o mesmo homem que à sua magreza de doente assim se referiu:
TARZAN, O FILHO DO ALFAIATE
Quem foi que disse que eu era forte?
Eu poso pros fotógrafos
De lutas não entendo abacate
ÚLTIMO DESEJO
Nosso amor que eu não esqueço
Se alguma pessoa amiga
Jurei não mais amar
E nesta altura acrescentamos, ou melhor, o gênio de Noel acrescenta um precioso dado: em uma linha de um verso ele exprime uma vivência, uma observação fina. Por exemplo, quando ele compõe em Dama do Cabaré o verso "Você nela me dizia que quem é da boemia", ele nos diz, para todos que já passamos noites e mais noites a beber: a gente dessas noitadas, pelo estilo de vida ou por vício, é leviana, dispersa, mentirosa, tão egoísta por fim quanto animais mimados, e por isso, " não gosta de ninguém". Ele é capaz de em linhas de versos impor uma reflexão que causa espanto aos preconceitos que acham alturas somente na tradição acadêmica, nas glórias institucionalizadas. Em dúvida?
"O costume é a força
"Quem acha vive se perdendo" ou
"Não posso mudar minha massa de sangue", para dizer que é suburbano, do lado marginalizado, por vocação, gosto, alma e destino.
TRÊS APITOS
Quando o apito
Você que atende ao apito
Você no inverno
Nos meus olhos você lê
Sou do sereno
O X do problema em Noel é que ele é um compositor popular com um pensamento, uma reflexão, que passa por cima de toda folclorização, de todo exotismo. Ele responde insofismável à superioridade com que a gente culta, educada, trata os estranhos a seu meio. E não se diga por favor que Noel é um homem educado porque estudou Medicina, como se esse curso desse educação estética e humana a alguém. Não se diga, ainda que se aceite essa ilusão: Noel apenas começou essa humanidade de anatomia. Nem se diga que ele viveu e transitou em meios mais sofisticados: se por esses ambientes passou, ele gostava mais e era querido nos ambientes marginalizados, dos malandros, e da negrada. (Há um depoimento de Dona Zica, de Cartola, sobre isto.) Talvez com mais propriedade se diga que tendo todos os motivos para escrever os versos mais tristes, e tão-somente estes, ele não só os escreveu, como da tristeza e desgraça zombou. Ele, à sua maneira, bem fez o que recomendava Sartre: "Na vida importa mais o que fazemos do que nos fazem". Com Noel, o X do problema, que se não o resolve, pelo menos o escreve, é que ele é um artista de excepcional talento, diria, até, e nos perdoem o capricho livresco: Noel é um artista total, aquele artista que todos sonhamos, ou deliramos em noites de febre e loucura, algum dia numa felicidade ou maldição ser. Ele é trágico, satírico, lírico, humano, cômico, alto, verdadeiro. No dia 5 de maio de 1937, um jornal do Rio pôs em manchete: "A morte prematura de Noel Rosa". Hoje percebemos melhor que mais prematura que a sua morte, aos 26 anos de idade, mais prematura que a sua morte foi a sua vida entre nós brasileiros. Até hoje, em 2004, ainda não sabemos o que fazer diante da sua humanidade. Se assim não fosse, maio não teria passado tão triste, tão oculto. Sem nenhuma lembrança, sequer, de que num maio assim perdemos o nosso Frankestein brasileiro. |
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