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La insignia
3 de dezembro de 2004


EEUU en guerra

O impensável de cada dia


__EEUU en guerra__
2001-2002 2003 2004
John Pilger (*)
Outras Palavras. Brasil, dezembro de 2004.

Tradução: Imediata



O ensaio de Edward S Herman que se tornou ponto de referência sobre o tema: "A Banalidade do Mal", nunca pareceu mais pertinente. "Fazer coisas terríveis de uma maneira organizada e sistemática se baseia na 'normalização'", escreveu Herman. "Geralmente, há uma divisão de trabalho quanto ao se fazer e racionalizar o impensável, com o tratamento brutal e a matança sendo feitas por determinado grupo de indivíduos… enquanto outros trabalham para aprimorar a tecnologia (um gás crematório mais eficiente, um napalm que queima por mais tempo e que é mais adesivo, fragmentos de bomba que penetram na carne em padrões mais difíceis de serem detectados… É função dos especialistas e dos principais meios de comunicação normalizar o impensável para o público em geral."

No programa Today da Radio 4 (de 6 de novembro), um repórter da BBC em Bagdá se referiu aos iminentes ataques na cidade de Faluja como "perigosos" e "muito perigosos" para os norte-americanos. Quando perguntado sobre a população civil, ele disse, num tom tranqüilizador, que os marines dos EUA estavam "circulando com uma Tannoy" e dizendo às pessoas para abandonarem a cidade. Ele se esqueceu de dizer que milhares e milhares de pessoas seriam, na verdade, abandonadas na cidade. Ele mencionou, de passagem, o "mais intenso bombardeio" da cidade, sem nenhuma menção do que aquilo significaria para as pessoas que se encontrassem sob as bombas.

Quanto aos defensores, ou seja, os iraquianos que resistem numa cidade que heroicamente ousou desafiar Saddam Hussein; eles são chamados de meros "insurgentes entrincheirados na cidade", como se fossem um corpo alienígena, uma inferior e descartável forma de vida a quem vai "se dar a descarga" (o Guardian), um apropriado "apanhador de ratos", que é o termo que outro repórter da BBC nos disse durante a Vigia Negra. Segundo um oficial britânico de alto nível, os americanos consideram os iraquianos como Untermenschen, um termo que Hitler usou em Mein Kampf para descrever os judeus, os rumenos e os eslavos, ou seja, como subumanos. É assim que o exército nazista assediou as cidades russas, matando tanto combatentes quanto não combatentes.

A normalização de crimes coloniais, como o ataque contra Faluja, requer uma alta dose de racismo, associando nossa imaginação ao "outro". A reportagem afirma que os "insurgentes" são liderados por sinistros estrangeiros, como aqueles que cortam a cabeça das pessoas: por exemplo, Musab al-Zarqawi, um jordaniano sobre quem se afirma tratar-se de um dos "principais elementos" da al-Qaeda no Iraque. Isso é o que dizem os americanos; é também a mais recente mentira de Blair no Parlamento. Basta contar o número de vezes que o fato nos foi papagaiado frente à câmera. Nenhuma ironia é atribuída ao fato de que a absoluta maioria dos estrangeiros presentes no Iraque é composta de americanos e que, segundo todas as indicações, são abominados. Essas indicações provêm de organizações aparentemente críveis, as quais estimam que dos 2.700 ataques a cada mês, feitos pela resistência, seis podem ser creditados ao infame al-Zarqawi.

Em carta enviada no dia 14 de outubro para Kofi Annan, o Conselho Shura de Faluja, que administra a cidade, disse: "Em Faluja, [os americanos] criaram um novo e vago alvo: al-Zarqawi. Quase um ano se passou desde a criação deste novo pretexto, e toda vez que destroem casas, mesquitas, restaurantes, e matam crianças e mulheres, eles dizem: 'Lançamos uma operação bem sucedida contra al-Zarqawi.' O povo de Faluja lhe garante que esse pessoa, caso exista, não se encontra em Faluja… e que não temos qualquer ligação a qualquer grupo que apóia um comportamento tão desumano. Nós apelamos ao senhor para que pressione a ONU [para prevenir] o novo massacre que os americanos, juntamente com o governo fantoche, estão planejando começar em breve em Faluja, assim como em muitas outras partes do país."

Nenhuma palavra foi reportada pelos principais canais de mídia da Grã-Bretanha ou dos EUA.

"Mas o que será preciso para fazê-los desembuchar?" perguntou em abril o dramaturgo Ronan Bennett, depois que os marines dos EUA, num ato de vingança coletiva por terem matado quatro mercenários americanos, massacraram mais de 600 pessoas em Faluja; cifra essa que nunca foi negada. Na época, assim como agora, eles usaram o poder de fogo dos AC-130 e dos caça-bombardeiros F-16, assim como 500 libras de bombas contra as favelas. Eles incineraram as crianças, seus franco-atiradores tendo se gabado de terem matado tudo o que movia, como os franco-atiradores faziam em Sarajevo.

Bennett se referia à legião dos silenciosos partidários Trabalhistas, com honrosas exceções, e aos ministros lobotomizados de nível inferior (lembram-se de Chris Mullin?). Ele poderia ter acrescentado aqueles jornalistas capazes de tudo para proteger "o nosso" lado, que normalizam o impensável, sem nem piscar diante da imoralidade e criminalidade demonstráveis. Naturalmente, ficarmos chocados com aquilo que "nós" somos capazes de fazer é perigoso, porque isso nos pode levar a uma melhor compreensão do porque "nós" estamos lá, tanto para começo de conversa, e sobre o "pesar" que "nós" levamos não somente ao Iraque, como a tantas partes do mundo: que o terrorismo da al-Qaeda seja uma bobagem, quando comparado ao nosso.

Não há nada de ilícito quanto a essa "máscara", ela ocorre na luz do dia. O exemplo recente mais contundente foi o que seguiu o anúncio, em 29 de outubro, no Lancet, de um estudo que estimava que 100.000 iraquianos morreram como conseqüência da invasão anglo-americana. Oitenta e quatro por cento das mortes foram causadas pelas ações dos americanos e dos britânicos, e 95 por cento dessas se trataram de morte provocada por ataques aéreos e fogo de artilharia, a maioria contra mulheres e crianças.

Os editores do excelente MediaLens observaram a pressa - ou melhor, a disparada - para atenuar essa notícia chocante com "ceticismo" e silêncio. Eles reportaram que, até o dia 2 de novembro, o relatório do Lancet tinha sido ignorado pelos jornais: Observer, Telegraph, Sunday Telegraph, Financial Times, Star, Sun e muitos outros. A BBC enquadrou o relatório em termos de "dúvidas" do governo e o Channel 4 News se incumbiu de fornecer uma versão devidamente podada, conforme briefing enviado por Downing Street. Com uma exceção, nenhum dos cientistas que compilaram esse relatório rigoroso e reexaminado foi solicitado a substanciar o trabalho até dez dias depois do seu lançamento, quando o pró-guerra Observer publicou uma entrevista com o editor do Lancet, apresentada como se o mesmo estivesse "respondendo aos seus críticos". David Edwards, um editor do MediaLens, perguntou aos pesquisadores para responderem à crítica da mídia; a demolição meticulosa das mesmas pode ser vista no alerta do site [_http:/www.medialens.org_] do dia 2 de novembro. Nada disso foi publicado pelos principais veículos de comunicação. Assim, o fato impensável de que "nós" tínhamos nos engajado em tal massacre, foi suprimido - normalizado. Isso faz lembrar a supressão da morte de mais de um milhão de iraquianos, incluindo meio milhão de crianças com menos de cinco anos, como resultado do embargo imposto segundo insistência anglo-americana.

Contrastando com isso, não há qualquer questionamento da mídia quanto à metodologia do Tribunal Especial Iraquiano, o qual anunciou que valas comuns em massa contêm 300.000 vítimas de Saddam Hussein. O Tribunal Especial, produto do regime colaboracionista de Bagdá, é controlado pelos americanos; cientistas respeitáveis não querem ter nada a ver com isso. Não há qualquer questionamento do que a BBC chama de "primeiras eleições democráticas". Não há qualquer reportagem de como os americanos assumiram o controle do processo eleitoral com dois decretos passados em junho, permitindo uma "comissão eleitoral" com efeito para eliminar os partidos de que Washington não gosta. A revista Time reporta que a CIA está comprando seus candidatos preferidos; é assim que a agência subornou eleições em todo o mundo. Quando e se as eleições ocorrerem, vamos receber doses de clichês sobre a nobreza do ato de votar, enquanto os fantoches da América são "democraticamente" eleitos.

O modelo para isso foi a "cobertura" da eleição presidencial americana, uma tempestade de lugares comuns visando normalizar o impensável: porque aquilo que aconteceu em 2 de novembro não foi democracia em ação. Com somente uma exceção, do bando de especialistas que voaram de Londres, nenhum deles descreveu o circo de Bush e Kerry como a febre de menos de 1 por cento da população, os ultra-ricos e poderosos, que controlam e administram a permanente economia de guerra. O fato de que os perdedores não foram somente os democratas, mas a vasta maioria dos americanos, independentemente de para quem eles tenham votado, foi simplesmente tabu.

Ninguém reportou que John Kerry, ao contrastar a "guerra contra o terror" com o ataque desastroso de Bush ao Iraque, meramente explorou a desconfiança quanto à invasão para construir suporte para o domínio americano no mundo. "Eu não estou dizendo para abandonarmos [o Iraque]", disse Kerry. "Estou falando em vencermos!". Desse modo, tanto ele quanto Bush deslocaram a agenda ainda mais para a direita, de modo que milhões de democratas contra a guerra pudessem ser persuadidos de que os EUA têm "a responsabilidade de finalizar o trabalho", a fim de que não haja "caos". A questão da campanha presidencial não foi Kerry nem Bush, mas uma economia de guerra visando à conquista no exterior e a divisão econômica em âmbito doméstico. O silêncio sobre isso foi compreensível, tanto na América quanto aqui.

Bush ganhou ao invocar, mais habilmente do que Kerry, o medo de uma ameaça mal definida. Como é que ele foi capaz de normalizar essa paranóia? Vejamos o passado recente. Depois do fim da guerra fria, a elite americana - republicana e democrata - tinham grande dificuldade de convencer o público de que os bilhões de dólares gastos na economia de guerra não deveriam mudar de direção, no sentido de um "dividendo da paz". A maioria dos americanos recusaram de acreditar que ainda havia uma "ameaça" tão poderosa quanto a ameaça vermelha. Isso não preveniu Bill Clinton de enviar ao Congresso a maior conta de "defesa" da história em apoio de uma estratégia do Pentágono chamada "supremacia de espectro integral" ("full-spectrum dominance"). Em 11 de setembro de 2001, a ameaça recebeu um nome: Islã.

Recentemente, num vôo para a Filadélfia, vi o relatório Kean do Congresso sobre o 11 de setembro, feito pela Comissão do 119, à venda nas livrarias dos aeroportos. "Quantos volumes vocês venderam?" perguntei. "Um ou dois", foi a resposta. "Vão sumir logo." Apesar disso, esse livro de capa azul é uma revelação. Como o relatório Butler no Reino Unido, o qual detalhou toda a evidência incriminadora de que Blair massageou a inteligência antes da invasão do Iraque, depois deu seus golpes e concluiu que ninguém era responsável, o relatório Kean deixa tudo o que aconteceu dolorosamente claro, só que falha ao não chegar às conclusões que, portanto, saltam aos olhos. Trata-se de um ato supremo de normalização do impensável. Não é de surpreender, já que as conclusões são vulcânicas.

A evidência mais importante da Comissão do 11/9 veio do General Ralph Eberhart, comandante da North American Aerospace Defence Command (Norad). "Os aviões de caça da força aérea poderiam ter interceptado os aviões seqüestrados que se dirigiam ao World Trade Center e ao Pentágono," disse ele, "se os controladores do tráfego aéreo tivessem pedido ajuda 13 minutos antes… Poderíamos ter derrubado todos os três aviões… todos os quatro."

Porque isso não aconteceu?

O relatório Kean deixa claro que "a defesa do espaço aéreo dos EUA em 119 não foi conduzida de acordo com o treinamento e os protocolos preexistentes… Em caso de confirmação de seqüestro, os procedimentos estipulavam que o coordenador para seqüestro que estivesse de plantão contatasse o Centro de Comando Militar Nacional do Pentágono [ou Pentagon's National Military Command Center (NMCC)]... Daí, o NMCC pediria aprovação do departamento da Secretaria da Defesa para providenciar assistência militar…"

Singularmente, isso não aconteceu. O administrador suplente da Federal Aviation Authority (Órgão Federal para a Aviação) disse à comissão que não havia qualquer razão para não tornar operativo o procedimento padrão. "Pelos meus 30 anos de experiência…" disse Monte Belger, "o NMCC estava na rede e ouviu tudo em tempo real… posso afirmar ter experienciado dúzias de seqüestros… e eles estavam sempre ouvindo ao mesmo tempo que os demais."

Mas nessa ocasião, eles não estavam. O relatório Kean afirma que o NMCC nunca foi informado. Porque? De novo, extraordinariamente, todas as linhas de comunicação falharam, conforme foi dito à comissão. Donald Rumsfeld, secretário da defesa, não pôde ser encontrado; e quando finalmente falou com Bush, uma hora e meia depois, o relatório Kean diz: "foi uma chamada breve, na qual não se falou da autoridade para derrubar os aviões". Como conseqüência, os comandos de Norad foram "deixados no escuro, com relação a qual seria a missão deles".

O relatório revela que a única parte do sistema de comando previamente à prova de falhas, e que estava em funcionamento era o da Casa Branca, onde o Vice Presidente Cheney estava em controle efetivo naquele dia, e em contato direto com o NMCC. Porque ele não fez nada a respeito dos dois primeiros aviões seqüestrados? Porque o NMCC, o elo vital, permaneceu silencioso pela primeira vez em sua existência? Kean ostensivamente se recusa a endereçar a questão. Naturalmente, ela pode ter sido o resultado da mais extraordinária combinação de coincidências. Ou não.

Em julho de 2001, um documento top secret preparado para Bush afirmava: "Nós [a CIA e o FBI] acreditamos que OBL [Osama Bin Laden] lançará um significativo ataque terrorista contra interesses dos EUA e/ou de Israel nas próximas semanas. O ataque será espetacular e concebido para infligir mortes em massa contra instalações ou interesses dos EUA. As preparações para os ataques já foram efetuadas. Os ataques ocorrerão com pouco ou sem aviso prévio."

Na tarde do dia 11 de setembro, Donald Rumsfeld, depois de ter fracassado em qualquer tipo de ação contra aqueles que tinham acabado de atacar os Estados Unidos, disse aos seus assessores para que colocassem em prática um ataque ao Iraque - quando qualquer evidência era inexistente. Dezoito meses depois, a invasão do Iraque, não provocada, e baseada em mentiras agora documentadas, teve lugar. Esse crime de proporções épicas é o maior escândalo de nosso tempo, o mais recente capítulo na longa história do século XX de conquistas feitas pelo ocidente das terras e dos recursos de outros povos. Se permitirmos que isso seja normalizado, se recusarmos a questionar e a provar as intenções escondidas e as inenarráveis estruturas secretas de poder no bojo dos governos "democráticos", e se permitirmos que o povo de Faluja seja esmagado em nosso nome, então é porque estamos renunciando tanto à democracia quanto à humanidade.


(*) John Pilger é atualmente professor visitante na Cornell University, Nova York. Seu livro mais recente, Tell Me No Lies: investigative journalism and its triumphs, (Não Me Digam Mentiras: jornalismo investigativo e seus triunfos) foi publicado pela Jonathan Cape. Este artigo apareceu primeiramente no New Statesman.



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