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La insignia
16 de agosto de 2004


Entrevista com Robert Wilson

«A vingança é uma queimadura lenta»


Helena Vasconcelos
Storm. Portugal, 31 de julho. (Em colaboração com o Jornal Público)


Robert Wilson, escritor inglês, vencedor do Prémio Golden Dagger com "O Último Acto em Lisboa", conhece bem Portugal e a Península Ibérica. "O Cego de Sevilha" é o seu último grande sucesso.

Helena Vasconcelos - O seu livro começa com a seguinte frase: "Tens de olhar - disse a voz." O leitor não sabe quem tem de olhar, de quem é a voz e o porquê da situação. É assustador. Utilizou este tipo de clima para estabelecer o tom dramático da narrativa?

ROBERT WILSON - Na realidade, o livro começa pelo título "O Cego de Sevilha". É óbvio que detectives e assassinos cegos têm poucas probabilidades e, por isso, o leitor apercebe-se imediatamente de que há uma metáfora implícita. A cena inicial coloca o leitor na cadeira da vítima que está a ser obrigada a ver algo. Ela recusa-se e, por isso, é forçada a olhar. O mais fascinante acerca desta parte é que as pessoas queixam-se da descrição gráfica de um acto demasiado violento quando tal grafismo não existe. Não temos qualquer ideia da imagem terrível que a vítima foi forçada a ver e tão-pouco temos a percepção do que foi perpetrado. O leitor, ao ser colocado naquele lugar, imagina coisas terríveis. Esta primeira cena induz o leitor a dar asas à imaginação porque essa mesma imaginação é mais horrível do que qualquer coisa que o escritor possa criar. Isto acontece porque os nossos terrores são individuais, são feitos à medida de cada um. Quando Javier Falcón vê o corpo e descobre o que lhe foi feito, o seu horror transforma-se no horror do leitor que passa pelo mesmo choque. Tudo isto é uma preparação mental para o processo que se segue: por que razão negamos certas coisas, como é que encaramos outras, como é que convivemos com os perigos (e recompensas) do reconhecimento da verdade, claramente, pela primeira vez.

P. - Quer dizer que esses perigos estão tão relacionados com a "cegueira" como com o horror de "ver demasiado"?

R. - O tema principal gira em torno da aparência e da realidade. Repare-se nesta estatística: mais de 70 por cento das vítimas de assassinato conhecem os seus assassinos. Isto quer dizer que são muito maiores as probabilidades de se ser morto por um amigo, um vizinho, um parente ou um amante do que por um psicopata que ande pelas ruas. Uma relação pode parecer próxima, até apaixonada, mas pode estar fatalmente contaminada pela fúria. Quem alimenta essa fúria pode quebrar o elo com a civilização e transformar-se no que realmente é - um criminoso. O título do livro, a horrível assinatura do assassino e as suas mensagens subsequentes - a que ele chama as suas "lições de ver", uma forma de ensinar a polícia a olhar para as coisas - indicia que este livro é sobre a percepção. Estou sempre a fornecer ao leitor uma experiência em primeira mão, levando-o a tirar conclusões que, de seguida, são confundidas com a realidade.

P. - Na sua qualidade de detective, Falcón precisa de ver para descobrir, para saber. No entanto, coloca-o num mundo de invisuais, desde os mortos até à psiquiatra cega. O próprio Falcón parece estar atacado de uma espécie de cegueira - em relação ao seu passado, a várias pistas, etc. - e durante a investigação afirma que perdeu a sua intuição. Será que essa forma de não visão tem a ver com um desejo de esquecimento?

R. - Absolutamente. O cego de Sevilha pode ser qualquer um dos intervenientes. É irónico que seja a psiquiatra cega quem ajuda Falcón a ver. A percepção, evidentemente, nada tem a ver com o olhar mas com o reconhecimento e com o desbloquear da negação. Há loucura no assassino porque ele está a forçar as pessoas a olhar para coisas que desencadeiam memórias daquilo que realmente já conhecem mas que tentam, desesperadamente, esquecer.

P. - Existe uma referência constante e directa ao acto de dormir. Será como o "To die, to sleep... perchance to dream" do Hamlet shakespereano ou o "The Big Sleep" de Raymond Chandler?

R. - Dormir é um aspecto muito importante da nossa vida. Fechamos os olhos e descansamos do mundo. O assassino retira essa capacidade às vítimas. O sono deve ser um tempo de repouso, durante o qual o cérebro se reequilibra, mas não há descanso quando as portas do caudal da memória se abrem. Há um verso de Shakespeare, em Macbeth, que me parece, aqui, mais apropriado: "Sleep no more! Macbeth does murder sleep, the innocent sleep, Sleep that knits up the ravelled sleeve of care, The death of each day's life, sore labour's bath, Balm of hurt minds, great nature's second course, Chief nourisher of life's feast." (Acto II Cena 2 L. 36)

P. - No início de vários capítulos do livro, presenciamos o acordar difícil de Javier. E há uma referência sua que liga esses penosos despertares ao final de uma sessão de cinema, quando as luzes se acendem...

R. - Não faço tanto a relação com o sonho e com a imagem do cinema e da fotografia mas mais com a memória. Uma fotografia acelera o processo da memória em Javier. Ele sente-se projectado por experiências emocionais mais fortes do que as que experimenta na escuridão solitária de uma sala de cinema.

P. - Um processo desencadeado pela leitura dos "Diários" do próprio pai, Francisco Falcón.

R. - A descoberta de elementos relacionados com a família Falcón enriquece a memória de Javier. Quase não há diferenças entre a agitação dos sonhos de Javier, a intrusão das sugestões da psicanalista e os meandros da investigação. Os sonhos de Javier possuem a sua realidade própria e, a partir daí e do que emerge das sessões de psicanálise, ele tem de seleccionar as pistas que levam ao reconhecimento do porquê da sua identidade. O leitor tão-pouco pode tirar conclusões apenas da claustrofobia das ruas ou das angústias mentais de Javier.

P. - Será que no cerne dos seus livros está a noção de que a realidade não é ver, mas saber lidar com esse conhecimento?

R. - Sim. Os seres humanos são, naturalmente, muito secretivos. Somos instruídos na arte do disfarce e, desde a mais tenra idade, desenvolvemos a capacidade de iludir. Sem isso, seríamos incapazes de levar a cabo os nossos negócios, na política seríamos um fiasco e tornar-se-ia terrivelmente difícil apaixonarmo-nos. Precisamos da falsidade para que haja verdade. Existe, portanto, um potencial fantástico para a confusão. Sempre gostei da ironia do termo informático "wysiwyg" ("what you see is what you get"/ "o que vês é o que tens"), porque no mundo dos humanos o que se vê nem sempre é o que se tem. É preciso saber para sermos capazes de fazer essa distinção.

P. - "O Cego de Sevilha" representa um confronto com o passado, algo que surge amiúde nos seus romances. Um passado relacionado com histórias pessoais, mas também com a História em geral.

R. - Tudo parte da minha vontade de conhecer as pessoas, o porquê e o como das suas vidas. Cada geração tem a sua paisagem particular, fundamental. Cresci nos anos a seguir à Segunda Grande Guerra, depois, embarquei nos "swinging sixties" e nos mais deprimentes anos 70. O meu pai foi piloto de bombardeiro entre 1942 e 1945 e continuou na RAF, depois da guerra. Em criança, eu brincava às guerras. A geração seguinte afastou-se dessa experiência. Fui educado de uma forma bastante rígida, cheia de regras. Agora, não existem regras. É interessante observar o desenvolvimento de uma sociedade e, como europeu, tenho um fascínio pela nossa própria História. É algo pessoal. A maior parte dos crimes (excepto os assassínios em série) têm motivos bem profundos. De onde vêm esses motivos? A vingança é uma queimadura lenta. Defeitos de carácter podem levar toda uma vida a revelarem-se.

P. - As referências políticas neste livro - a Guerra Civil Espanhola, a guerra na Europa, a Legião Estrangeira - são complementadas por outras que continuam a ser actuais: a prostituição, o abuso de crianças, a pornografia, o contrabando, o assassínio. São temas muito violentos. Acha que a crueldade é a base da natureza humana?

R. - O homem primitivo tinha um apurado instinto para a caça. Era dessa forma que se alimentava, pondo em prática a forma mais eficiente de matar a presa. Existia também o instinto para proteger o território e qualquer competidor era eliminado. Na história da humanidade, o século passado foi o mais sangrento de sempre, quando era suposto ser o mais civilizado. As conquistas científicas continuam a ser usadas para fins devastadores. Cada vez se descobrem formas mais sofisticadas para aniquilar os nossos competidores. Pense-se como, recentemente, quão rápido o fervor nacionalista inflamou a Bósnia e a Herzegovina, quão rapidamente se desfizeram os laços que uniam uma velha comunidade, quando professores, carpinteiros, negociantes, pessoas "normais" se lançaram numa tarefa devastadora. O nosso instinto está virado para a violência e para a crueldade. Mas o instinto predador também nos leva à descoberta. O último século também foi palco de grandes avanços, o que equilibra tudo. Creio que se tornaria entediante viver numa utopia.

P. - A relação pai/filho é um dos temas clássicos do romance como género. Aqui trata-se da história de um pai que começa como um herói e de um filho que não é nada de especial. Ao longo da acção dá-se uma inversão de papéis - o pai mostra um lado bem mais sombrio e o filho ganha estatura. Será que se trata de uma espécie de "ajuste de contas"?

R. - A nossa primeira impressão de Francisco Falcón é dada por outras personagens. Ficamos a saber que ele é um homem carismático, um famoso e brilhante artista. É uma imagem de propaganda, difundida pelos seus "amigos": é o que ele aparenta ser. No caso de Javier, ele é apresentado como um homem frio, sério, todo apessoado, incapaz de demonstrar calor humano. Para o fim, espero que essa impressão se modifique. O pai revela-se um monstro e o filho mostra uma enorme coragem ao confrontar-se com os segredos horríveis da sua família. Como é fácil, para nós, deixarmo-nos impressionar pelo carisma e pelo talento, obliterando as falhas de carácter! Como nos parecem difíceis as pessoas que não são obviamente atraentes e que, no entanto, possuem grandes reservas escondidas de coragem e humanidade!

P. - O cinema, a televisão e os "media" também têm uma grande importância neste livro. Trata-se de um universo contemporâneo acelerado, dominado pela intrusão da imagem. Francisco Falcón, o grande artista, pelo contrário, não foi exposto a esse escrutínio...

R. - Falcón sénior adorava essa exposição e gostaria ainda mais dos "media" de hoje em dia. O seu oxigénio era a fama. Neste caso, uma vez que ele era uma fraude, a fama era tudo o que tinha. Agora, mais do que nunca, muita gente persegue a fama pela fama. Não é necessário um talento verdadeiro, o desejo poderoso de se ser famoso é suficiente, o que se aplica bem a Francisco Falcón, o homem que reconhecia a sua própria mediocridade mas que, mesmo assim, quis ser famoso. Ele mataria por isso.

P. - O assassino também é arrogante, brinca de gato e rato com Falcón e apresenta-se como um "artista"...

R. - O criminoso não faz batota, ele vinga-se. Escolhe uma forma artística como modo de vingança porque lhe parece correcto relativamente a Francisco e aos seus apaniguados. Apresenta os seus crimes como uma obra de arte completa, o que funciona como uma referência ao que se passa com determinadas formas artísticas contemporâneas. Temos visto os tubarões e vacas de Damien Hirst e os corpos verdadeiros e plastificados ("Body Works") de Gunther von Hagen. O projecto artístico definitivo tem como tema o assassínio com os seus títulos entrelaçados: "Real Art of Killing" ou "Killing Real Art".

P. - Escolheu um lugar e um tempo especiais: Sevilha durante as celebrações da Semana Santa, uma altura muito particular quando se mistura a religiosidade com o paganismo, a alegria com a mortificação, a punição com a redenção. Foi propositado?

R. - Escolhi Sevilha e a Semana Santa por razões variadas. É um tempo de grandes transformações, não só em termos religiosos - o jejum e a passagem pela morte e consequente redenção da Páscoa - mas também na própria cidade. Sevilha parece quase adormecida até à Semana Santa e, embora seja notório o clima de excitação das pessoas preparando-se para essa semana, somente quando os "pasos" aparecem nas ruas apinhadas é que os sevilhanos sentem realmente que o seu ano começou. A aparente religiosidade das procissões é ultrapassada por um sentimento de alegria pagã em relação à beleza da Virgem. Do bacanal que tudo acompanha até à teatralidade da procissão com as trompetas a soarem bem alto e os nazarenos encapuzados, tudo contribui para essa sensação. Na minha qualidade de escritor, tenho de ser cuidadoso com este material, uma vez que se corre o risco de fazer um guia turístico em vez de um romance. Por isso, decidi transformar todas essas associações clássicas, todos os clichés que as pessoas conhecem mesmo sem lá terem ido e torná-las parte integrante da história.

P. - Foi essa atmosfera singular que o ajudou a criar personagens que estão sob o efeito do impacto do que se desenrola à sua volta, o que os leva a reagir de formas bizarras?

R. - O assassínio que "abre" o livro é singular. Um homem está preso e amordaçado e é obrigado a olhar, na televisão, algo que ele não suporta ver. A primeira visão do corpo dessa vítima com os olhos abertos catapulta o Inspector Chefe Javier Falcón, um homem que mantém normalmente uma distância clínica em relação a estes acontecimentos, num paroxismo de horror e pânico. O crime ocorre nos últimos dias da Semana Santa quando, tal como a descrevo, a atmosfera tem algo de irreal, de onírico. O labirinto das ruas estreitas da cidade velha é o contraponto das sinuosas vias do cérebro angustiado do meu detective. Por isso, quando coloquei Falcón a cruzar-se duas vezes com as procissões (uma vez de dia, outra à noite), não o fiz pela "cor local" mas sim para introduzir uma relação psicológica. Falcón experimenta uma espécie de desmaio e, depois, um ataque de pânico e insinua-se a suspeita de que o seu interesse súbito em relação à própria mãe, desencadeado pela descoberta, na cena do crime, de certas fotografias tiradas em Tânger, faz com que memórias devastadoras venham à superfície. A tourada também tem um propósito, o de reproduzir a "faena" entre o detective e o assassino ao longo da investigação até ao desenlace inesperado. No final, na feira, há sevilhanas a dançar por entre os copos de "fino". Mais do que uma celebração hedonista, desejei que fosse uma imagem de redenção.



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