Portada Directorio Buscador Álbum Redacción Correo
La insignia
28 de maio de 2003


Subúrbio Blues: A poética de «Cimêncio»


Helena Vasconcelos
Storm. Portugal, maio de 2003.


Diogo Lopes e Nuno Cera criaram em conjunto um livro de grande originalidade e beleza. "Cimêncio" (Ed. Fenda, Lisboa) tornou-se rapidamente uma obra de referência. A Storm, para além de a divulgar, entrevistou os seus autores, Diogo Lopes e Nuno Cera (Nota: a entrevista está publicada a seguir ao texto "Subúrbio Blues")


Diogo Lopes, arquitecto, e Nuno Cera, fotógrafo, têm tido uma vida bastante agitada, nos últimos tempos. Nuno veio de Berlim para inaugurar a sua exposição na Galeria Pedro Cera, em Lisboa, o novo número da revista de arquitectura, Prototypo #008 "Gravity and Grace" (www.prototypo.com ) dirigida por Diogo, foi apresentado no Centro Cultural de Belém e ambos têm enfrentado o sucesso da publicação de "Cimêncio" - um livro único que aborda a questão do sempre crescente e mutante tecido urbano - com a delicadeza e entusiasmo fleugmáticos de quem sabe que o seu trabalho é bom, inovador e com características que conferem permanência.

Quem agarra "Cimêncio" (Ed. Fenda, Lisboa) mergulha imediatamente numa espécie de torpor hipnótico. A foto da capa é uma paisagem nocturna, evocadora do "set" de "Encontros Imediatos do 3º Grau" para quem ainda recorda o "clássico" de 1977 de Spielberg: o macisso (misterioso) de árvores escuras em primeiro plano e o brilho das luzes da cidade ao fundo - uma "Bright Lights, Big City" protegida ainda por remanescentes de uma natureza em vias de extinção - criam o clima de distanciamento, contrastes e estranheza. Depois, mal abrimos o volume, ficamos a saber o que quer dizer "cimêncio" - "sono profundo dos arredores", o que pressupõe o silêncio do cimento posto em repouso - um termo inventado por Luis Gouveia Monteiro e magistralmente consubstanciado por Nuno e Diogo. É a partir desse conceito que nos é proposta uma viagem pelos subúrbios, com as suas construções apressadas, os seus prédios habitualmente feios e descaracterizados, como se não fosse relevante a preocupação estética para quem os habita. São cortiços que se esvaziam durante o dia, altura em que os seus fantasmagóricos ocupantes se dirigem para a cidade (para os seus empregos e outras ocupações) e se enchem à noite, durante breves horas de sono profundíssimo e reparador, talvez precedido por rápidos instantes passados em frente às televisões entre uma última refeição distraída e a primeira do novo dia.

As fotografias iniciais mostram o caminho: auto-estradas, sinais, túneis que nos levam a alta velocidade para longe, para as construções inacabadas, os néons solitários, as gruas a riscarem o céu, janelas cegas, baldios, acessos que vão dar a becos sem saída cortados por cimento ou barreiras em estradas inacabadas. Vamos a caminho dos Top 10 do "cimêncio", os lugares "de lado nenhum", Lavradio, Babilónia, Barreiro,Taguspark, Caselas, Alcoitão, Massamá... As fotografias são eloquentes, os textos plenos de humor ácido, apontamentos em jeito de banda desenhada. Depois, entramos no reino das "98 Octanas", bombas e mais bombas de gasolina espectrais, lugares de passagem, de pontos de encontro, de cruzamento de vidas, desviadas por instantes do seu itinerário para uma pausa, para reabastecimento das respectivas viaturas ou para compra de produtos de última hora e primeira necessidade. É possível uma troca de olhares apressada, desgastada pela impaciência ou pelo cansaço. Talvez estejamos a chegar a "Brandoa City", próxima paragem, lugar mítico feito de contradições e contos de resistência como certas crianças difíceis que parecem capazes de sobreviver a todas as vicissitudes. "Brandoa City" tem aqui um lugar de eleição como exemplo paradigmático do "quotidiano pós-industrial" para um número vertiginosamente crescente de habitantes suburbanos. Escreve Diogo Lopes: " O luna-parque cosmopolita vai funcionando a custo, servindo povoamentos satélites onde a vida finalmente se processa em movimentos pendulares, impulsionada a trióxido de carbono. Bem vindos á estranha beleza da comutação e... boa viagem!"

Já quase não existem estradas secundárias, último reduto dos nostálgicos. Vai-se directamente para os blocos cerrados de apartamentos, para as grandes superfícies dos centros comerciais, para condomínios em permanente estado de (des)construção .No texto incluído no final do livro, Delfim Sardo atarda-se no conceito de paisagem, chamando a atenção para esse espaço que se apresenta à contemplação como forma de discurso interior. É estranho e quase paradoxal - mas apropriado - este "olhar" num livro que é o retrato da ausência. É revelador que se vejam pessoas em apenas uma fotografia - as silhuetas esbatidas de uma mulher com uma criança, talvez no final de um dia, a caminho de casa - e que estas sejam "substituídas", mas referenciadas, pelos automóveis parados geometricamente lado a lado junto aos prédios.

São imagens dos labirintos dos subúrbios com a sua caótica uniformidade ("numa hierarquia que corresponde a uma ordem do mundo") e (aparente) frieza desolada, um universo captado num espaço temporal muito breve situado algures entre o final de noites profundas e o início das madrugadas. Nas filas de trânsito das "horas de ponta" tudo é habitado por estranhos seres mutantes - meio humanos, meio robots - vindos dos dormitórios, arrancados ao seu sono tumular para repetirem os mesmos gestos todos os dias a horas certas, até ao fim dos tempos, avançando para as suas tarefas diárias, cruzando viadutos, arrastando-se por auto-estradas, parando em bombas de gasolina, alheados de sonhos, embrenhados na repetição de actos que lhes garantam a mais essencial sobrevivência.

Diogo Lopes escreve com eloquência e lirismo sobre essas existências apagadas pela uniformidade que, em geral, não encontram lugar na literatura, vocacionada para vidas glamorosas de heróis e heroínas, nem que seja por um dia. A televisão, o cinema e, em menor escala, a fotografia são os meios mais utilizados para "mostrar" estes lugares. Talvez por essa razão, os "reality shows" têm tanto sucesso. Por instantes tão fugazes como relâmpagos, alguém anónimo e desconhecido, vindo de um desses lugares, assume uma posição de estrelato, ganha o estatuto de "ser alguém" destacando-se dos demais. Diogo Lopes e Nuno Cera, ao juntarem-se em "Cimêncio" envolveram num manto de brilho e fantasia lugares de parte nenhuma, criando uma uma obra única em que uma nova poética do "não-lugar" se afirma como uma estética do futuro.


Breve entrevista aos autores de «Cimêncio»

HELENA VASCONCELOS.- Qual foi a finalidade deste livro? "Cimêncio" poderá ser entendido como um "statement" que diz algo como: "esqueçam, o mundo rural já pertence só à arqueologia da memória, estamos a viver o futuro que se constitui como um espaço urbano cada vez mais alargado, formando uma cidade imensa que cobre o planeta"?

DIOGO LOPES: A ter havido uma finalidade, assim no sentido mais instrumental, foi a de coleccionar um conjunto de observações e experiências desenroladas nas periferias. O "statement" - não gosto muito do termo - seria, creio eu, mais ao contrário: "esqueçam o mundo urbano e a sua arqueologia e olhem para um território cada vez mais alargado e híbrido (onde um rural, futurista, também existe) formando uma imensa paisagem sintética que tende a cobrir o planeta".

NUNO CERA:Basicamente foi a da criação de um objecto com duas visões paralelas (texto-imagens) sobre um conceito ou sobre um espaço.O tempo de realização foi fundamental para o objecto final. Ao longo de 4 anos a forma de observar e de captar esse conceito ( o do Cimêncio) alterou-se bastante.

H. V.: "Cimêncio" poderá ser a invenção de uma nova "poética" , seja no sentido de uma ligação com uma cultura específica, seja no sentido que por exemplo os surrealistas lhe deram, de acesso a uma experiência insconsciente, individual e colectiva?

D. L. Era bom que fosse. A questão do inconsciente parece-me importante: pela poética que há-de haver no estado de piloto automático, meio disléxico, em que muitas vezes cruzamos os espaços do cimêncio.

N.C. As imagens do Cimêncio Top 10 pretendiam funcionar como icones do lugar,como a possivel melhor forma de representar esse e só esse lugar.

H.V. "Cimêncio" poderá ser uma "estética do silêncio" , vidé George Steiner (ou Blanchot ou até mesmo Heidegger)?

D.L. E do ruído, claro. Mas não só estética, espero (senão era maquilhagem), acção também. Num sentido heideggeriano, acho impossível construir o que quer que seja sem se pressupor um sentido de habitar, mesmo que esse habitar seja completamente extremado ou distorcido. Esse acto de ocupação é indomável e imprevisível, é o nosso jogo de cintura e capacidade de resposta às paredes, tectos e pavimentos que nos confinam

H.V. As imagens de "Cimêncio" - ao contrário dos textos que "situam" os lugares (Brandoa, Babilónia, Tagus Park, dos mais "antigos" aos mais "modernos" ex: Taguspark ligado à tecnologia etc ) - tanto podiam ser na periferia de Lisboa como de outra cidade qualquer. Foi intencional a forma de mostrar essa característica de "não-lugar" ?

D.L. Acho que a pergunta remete mais para o Nuno mas podemos ter partido dessa intenção só que depois fomos oscilando entre uma coisa e a outra. Umas partes topográficas outras topológicas. A primeira metade do livro tem mais placas de sinalização depois na segunda a coisa desagrega-se e entra em "free surf".

N.C. As das bombas de gasolina - 98 octanas - são obviamente as de um "não lugar" e poderiam ter sido feitas em qualquer bomba de gasolina. O resto da imagens partilham um pouco desse espirito, de poderem ser um local ou uma cidade ou um suburbio de um qualquer ponto no mundo ocidental. Foi um pouco intencional a globalidade das imagens...

H.V. As pessoas pretendem envelhecer cada vez "melhor" e viver mais. Mas estes lugares envelhecem rapidamente e mal. Concordam com esta "distonia"? Quiseram mostrá-la no livro?

D.L. Não. Muitos destes sítios não envelhecem mal, pelo contrário só ganham com a passagem do tempo. Confere-lhes uma densidade que ninguém acreditou que teriam, ganham lastro. Têm até uma capacidade de congelar o tempo: não se passa nada.

N.C. Não sei se essa "distonia" existe.Pelo menos dessa forma tão paralela.

Mais do que os lugares envelhecerem , são as pessoas e a forma contemporanea de se viver que esgotam os lugares........Durante as viagens pelo o Cimêncio fomos a sitios que aparentemente estão velhos e que são impossivel de se estar e na realidade passamos por expriencias muito boas.Penso mesmo que o mais importante é a forma como se olha e vive a paisagem, tanto a urbana como a periferica.

H.V.: Em "Cimêncio" há ausência de pessoas e creio que em apenas uma fotografia se entrevêm os vultos fantasmagóricos de uma mulher e de uma criança. Foi intencional ? Não há "cimêncio" com gente? E só nas bombas de gasolina à beira da estrada é que elas ( as pessoas) emergem e se mostram e cruzam? O que diz o Diogo, como arquitecto - as construções serão feitas para as pessoas as habitarem? - em relação a isto e o Nuno como registador da imagem?

D.L. Foi mais uma coisa não completamente planeada. É no cimêncio que estão a maior parte das pessoas: nas nossas visitas estavam era a trabalhar noutro sítio ou de passeio de domingo. Acho que essa subtracção teve a ver com um interesse nosso, quase científico, pelas qualidades das suas paisagens físicas. As humanas de alguma forma fizeram a sua aparição espectral como micro-ficções visuais ou escritas. As pessoas encontram-se (muito, mesmo) nas bombas, nas roulotes, nas sessões da meia-noite no centro comercial, no snack, na rua, etc, etc..

N. C. .Desde o principio do projecto que decidi não ter nenhum tipo de preocupações sociais.Para mim e captar o espaço foi muito mais importante do que captar as pessoas.

Penso que só numa etapa muito avançada da selecção das imagens reparei que não existiam pessoas.Não foi intencional, provavelmente tem muito mais a ver com o facto de eu não gostar de fotografar pessoas que não conheço, não sei. No final penso que os "fantasmas" que habitam o livro são bastantes importantes para a atmosfera pos-bomba de neutrões que o cimencio contem e transmite. Obviamente que o Cimêncio tem pessoas, mas elas não foram importantes para as atmosferas e sensações dos espaços percorridos e registados....



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad Ciencia y tecnología | Diálogos | Especiales | Álbum | Cartas | Directorio | Redacción | Proyecto