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La insignia
21 de março de 2003


Liberalismo: o direito e o avesso


Carlos Estevam Martins
Gramsci e o Brasil / La Insignia. Brasil, março de 2003.


A Maria Conceição Tavares


A hegemonia liberal manifesta-se de diversas maneiras. Uma delas consiste no fato de que, hoje em dia, tentar ser antiliberal tornou-se tarefa difícil e até mesmo perigosa, capaz de pôr em risco sólidas reputações. Quem não é ou não quer ser liberal, quem tenta combater o liberalismo em nome de alguma concepção alternativa, enfrenta um terreno minado, repleto de armadilhas que induzem ao erro ou expõem os incautos a críticas imerecidas.

Suponhamos que você seja um democrata que queira defender a democracia. Se esse for o caso, você tem dois problemas a resolver: um, separar-se do liberalismo, definindo-o como algo que você repudia; dois, conceber a democracia como um ideal distinto, adversamente contraposto ao liberalismo.

Esses dois problemas, no entanto, simplesmente desaparecem se você, juntamente com a maioria das pessoas, pensa que liberalismo e democracia são a mesma coisa ou coisas que se misturam e se confundem, como na expressão "regime liberal-democrático". Nesse caso, não há nada a fazer. O democrata que pensa assim, permita-me dizê-lo, já se acha hegemonizado pelo liberalismo, não o vê como um estranho, como um adversário a ser combatido; ao contrário, admite-o como coisa sua, como parte integrante do seu próprio ideário. A democracia, nesse caso, perde toda e qualquer especificidade; ela se dissolve no interior da expressão "liberal-democracia" e é a um tal ponto absorvida pelo termo vizinho que, não fosse por sua utilidade prática, poderia ser eliminada sem que de sua exclusão resultasse qualquer prejuízo conceitual. De fato, qual é o plus que um regime soit disant liberal-democrático acrescenta? Que características possui que um regime meramente liberal também não possua?

Nas lutas ideológicas, a indefinição oferece muitas vantagens. Uma delas é ofuscar a visão dos outros. "Não se pode distinguir o regime liberal dos regimes não liberais", observa José Eduardo Faria (1) "sem preliminarmente explicitarem-se as ambiguidades que o termo liberalismo costuma expressar na linguagem política corrente". Para Faria, "o liberalismo é hoje uma expressão vaga, ambígua", um conceito "semanticamente desgastado". Diante dessa "imprecisão conceitual", caberia até mesmo perguntar: "haverá alguma possibilidade de se falar em liberalismo no singular, ou seja, unívoco e universal?"

De um modo geral, o discurso liberal tem se valido da polissemia para ocultar seus defeitos e exibir qualidades que não possui. O liberalismo tornou-se "um termo confuso e que confunde", observa Immanuel Wallerstein (2). Não obstante, "os liberais conseguiram cooptar as oposições: por um lado, os conservadores, que eram contra qualquer tipo de mudança, e, por outro, os radicais que queriam mudanças amplas e rápidas". Hoje, os antigos opositores do liberalismo "podem discutir se querem reformas mais rápidas ou mais lentas mas, basicamente, aceitam as premissas do liberalismo".

Moral da história: quem não é capaz de definir seu adversário não se livra de ser ludibriado e engolido por ele. Quem não distingue, diferencia, delimita, define e demarca não sabe a que se ater e se desnorteia; mesmo que lute, luta a esmo, sem saber contra o que deve lutar, que alianças mobilizar, que compromissos evitar. As questões terminológicas, ao contrário do que se costuma pensar nos meios políticos, nem sempre se reduzem a meras filigranas acadêmicas. Boa prova disso é a pesquisa recém-realizada pela Corporação Latinobarômetro (3), que revelou a existência de um alto nível de insatisfação com a democracia por parte dos latino-americanos em geral e dos brasileiro em particular. No nosso caso, apenas 39 por cento dos entrevistados disseram que preferem a democracia a qualquer outro sistema de governo. Os latino-americanos que se dizem satisfeitos com o funcionamento da democracia constituem uma minoria que não passa de 37% dos entrevistados. Um quadro melancólico, dir-se-ia.

Mas será mesmo verdade que a maioria da população brasileira não aprova nem prefere a democracia? Ou, alternativamente, quem sabe a população simplesmente rejeita o regime liberal que aí está, sem entretanto saber que se trata do regime liberal porque o vê disfarçado de democracia, sob o rótulo liberal-democrático? É difícil saber. Como é possível descobrir o que a população quer ou deixa de querer, quando se desconhece o significado certo das palavras?


A prática da doutrina

Reconheçamos que é difícil, muito difícil enfrentar o liberalismo. É tão difícil que as maneiras fáceis de enfrentá-lo, embora existam, revelam-se inócuas no fim das contas. É o que acontece com as tiradas niilistas, infantilmente radicais. O famoso sub-comandante Marcos, por exemplo, de modo algum serve à causa da verdade quando diz: "Aqueles que acreditam em esquemas tão rígidos e quadrados como suas cabeças [...] partem da premissa de que o liberalismo é uma doutrina." Na realidade, porém, "o liberalismo não tem a mínima coerência [...] Em outras palavras, é pura baboseira teórica (4)."

Tampouco se justifica tentar descartar o liberalismo por meio de apodos planfletários - tais como "fascista", "direitista", "conservador", "neoconservador"-- que, sobre serem inaplicáveis, são injustos. Que sentido tem chamar de "liberal fascista" a direita que "se apoderou da teologia liberal"? Estas expressões, do referido subcomandante, não servem para nada, a não ser para nos relembrar o antigo partido comunista alemão, que não sabia distinguir a social-democracia do nazismo hitlerista.

O epíteto de "conservador" ou "neoconservador" também não se ajusta ao figurino liberal (5). Até os dicionários ressaltam que "o liberalismo sempre se apresentou como força dinâmica, não como força dedicada à manutenção dos equilíbrios existentes." Em conexão com isso, vale a pena lembrar a famosa passagem do Manifesto em que Marx e Engels assinalam que a época burguesa, com o cortejo de crenças e idéias liberais que a acompanham, distingue-se de todas as anteriores por imprimir "uma revolução contínua na produção, uma incessante comoção de todas as condições sociais, um movimento e uma insegurança constantes". Como poderia o pensamento conservador, por mais neoconservador que fosse capaz de se tornar, coadunar-se com semelhante estado de coisas, em que o permanente é justamente a constante mudança? Quem acha que deve chamar os liberais de conservadores precisa antes dizer com que nome pretende designar aqueles verdadeiros conservadores que, por tradição e definição, sempre abominaram o liberalismo. A não ser que, por conservador, entendam o ideário daqueles que, sob a aparência da abertura ao novo, conseguem sacramentar a inalterada permanência das estruturas de dominação e exploração. Tudo bem; mas isso não deixa de ser uma maneira não-conservadora de praticar o conservadorismo. Em resumo, talvez se possa dizer que, para os antiliberais, seria muito mais fácil e extremamente mais desafiante deixar de lado as tergiversações e voltar a chamar os liberais simplesmente de liberais, sem sequer o inútil subterfúgio do "neo", à frente do nome que há tanto tempo os designa objetiva, honesta e corretamente.

Por fim, não custa reconhecer que de nada adianta afirmar e até demonstrar, como fizeram tantos críticos de esquerda, que o liberalismo é inaplicável na prática, que é uma concepção antiquada, referida à etapa concorrencial do processo de desenvolvimento capitalista, incompatível com as realidades da sociedade contemporânea, incapaz de fertilizar toda uma vasta gama de possibilidades historicamente constituídas. Nada disso tem grande serventia, pois, entre outras razões, os liberais podem muito bem ganhar o jogo, como vêm ganhando nos últimos trinta anos, sem ser preciso que o fundamentalismo liberal seja posto em prática.

Com efeito, não se deve desconsiderar a hipótese de que a principal utilidade do liberalismo para aqueles que hoje o pregam pode ser apenas de natureza negativa. Talvez o que lhes interesse não seja tanto o bem inalcançável que poderiam fazer a si mesmos, realizando a íntegra de seus próprios ideais, mas muito mais o mal que fazem aos seus oponentes, impedindo-os de avançar na direção de seus próprios objetivos. É de importância secundária saber quanto de liberalismo é capaz de se transformar em realidade, quando comparado com saber quanto de socialismo, democracia, soberania, desenvolvimento nacional, cidadania republicana, seguridade social, planejamento, intervenção estatal, reformas estruturais, cultura cívica, justiça social, humanismo, desalienação, desenvolvimento pessoal e solidariedade comunitária, quanto de antiliberalismo, enfim, vem sendo abortado na prática, graças à disseminação do "impraticável" ideário liberal.

Quem não se lembra da gloriosa social-democracia européia, que emergiu no cenário político mundial como força notoriamente antiliberal, imbuída do elevado propósito de nos conduzir ao socialismo pela via da plenitude democrática? Ela se propunha avançar impondo sucessivas reformas ao capitalismo mediante o progressivo aprofundamento do planejamento econômico, do dirigismo estatal, do processo de democratização, da transformação das relações capital-trabalho via co-gestão, cooperativismo e Welfare State. Originalmente, cabe lembrar, discutia-se a dicotomia reforma versus revolução. O programa social-democrático era criticado pelas correntes mais radicais por ser gradualista -- limitado a avançar aos poucos -- e não por ser capitulacionista -- empenhado em regressar do socialismo ao capitalismo, da democracia ao liberalismo.

A que ficou reduzida a promessa social-democrata foi o que se viu recentemente, na última reunião de cúpula da Terceira Via em Florença (nov.99). Alí, como anotou Marilena Chauí (6), falou-se muito em valores: valor da vida, da ética, da família, da liberdade e assim por diante. Mas "a pregação de valores conseguiu a proeza de não falar uma única vez do valor propriamente dito, isto é, do capital e da relação capital-trabalho". Os idealizadores da Terceira Via não se demovem de seus propósitos de "fazer uma economia de centro e uma política de esquerda, ou seja, manter o núcleo duro da materialidade capitalista, acrescido dos valores socialistas: o bolo é o mercado; a cobertura confeitada são os valores socialistas".

Proposta lamentável, certamente. Mas vá lá. O que, entretanto, passa dos limites e alcança as raias do escárnio é a interpretação que se convencionou dar do fiasco social-democrata. Para exemplificar, não precisamos ir muito longe. Aqui está Vicente Barreto (7), reclamando nas páginas do Jornal do Brasil que só "os social-democratas de extração marxista" (isto é, os que não se renderam) não conseguiram captar a grandiosidade das novas feições assumidas pela "social-democracia contemporânea que se libertou de alguns mitos, como a estatização e o nacionalismo [...] e abriu-se para o cosmopolitismo e a economia de mercado". Só aqueles renitentes social-democratas de extração marxista, que "ainda não conseguiram superar o preconceito que identifica no liberalismo a ideologia do Estado burguês", só estes são incapazes de ver que "a social-democracia incorporou e aperfeiçoou as instituições liberais", que essa "absorção da tradição liberal veio sedimentar a convergência entre o liberalismo e o socialismo" e que a configuração daí resultante, "chamada de liberalismo radical por Ralf Dahrendorf," foi teorizada por "socialistas" renomados, como Norberto Bobbio e Felipe Gonzales, que "demonstraram a factibilidade da social-democracia como etapa superior do Estado liberal".

Onde foi parar a especificidade dos social-democratas? Esfarelou-se nas mãos do liberalismo. Quanto mais se aproximaram dos liberais, mais remotos, até se perderem de vista, foram ficando o espírito, os fins, os meios e todos os demais traços característicos de sua identidade. O pior de tudo é que essa mutação histórica, que no passado dava vergonha, converteu-se hoje em motivo de júbilo, pois comemora-se justamente o oposto do que aconteceu quando se imagina que os social-democratas teriam engolido e superado o liberalismo. A cooptação cega o cooptado. O social-democrata que reconhece a derrota por certo perdeu a batalha mas, sem ter mudado de opinião, continua lutando por seus ideais; o cooptado, ao contrário, torna-se inofensivo: entrega-se e canta vitória.

Em suma, mesmo que não possa realizar-se positivamente, por ser uma concepção caduca, o liberalismo realiza-se negativamente, impedindo que seus opositores o desbanquem, ao mesmo tempo em que os envereda pelos caminhos do autodesvirtuamento.


Demarcar para superar

A reflexão que nos interessa fazer -- e que aqui não será apresentada em sua íntegra (8) -- versa sobre o tema geral das relações entre liberalismo e democracia. Dita reflexão começa com a análise dos conteúdos que compõem o núcleo conceitual da concepção liberal, tendo em vista alcançar o objetivo imaginado por José Eduardo Faria, qual seja, o de que se possa "falar do liberalismo no singular, isto é, unívoco e universal." A essa primeira parte, em que se expõe, digamos assim, aquilo que o liberalismo é, segue-se uma segunda parte em que se faz a análise - aqui parcialmente reproduzida - daquilo que o liberalismo não é, nem nunca será, por estar fora, aquém ou além, de sua natureza. Em outras palavras, trata-se de demarcar (tanto pelo lado do sim, como pelo do não) o círculo que é próprio e exclusivo do liberalismo e dentro do qual ele pode se mover legitimamente. Com isso, pretende-se resgatar o debate público, expurgando-o das doses de indeterminação, confusão e indecisão propícias à continuidade da hegemonia liberal.

Ambas as démarches -- a do ser e a do não ser -- derivam sua importância do fato de serem indispensáveis à compreensão da democracia como uma possibilidade à parte, cuja identidade não se confunde com a do liberalismo. O enfrentamento da questão do liberalismo é um passo fundamental para a teorização da democracia como algo distinto, que vale por si mesmo, que não só não depende do liberalismo para existir, como só pode vir a ser se e quando ultrapassá-lo (9).

Mais do que isso, as duas démarches representam incitações a uma rediscussão do liberalismo que ambicione percorrer, metodicamente, as etapas que, segundo Goran Therborn (10), constituem os momentos fundamentais do pensamento crítico. A saber: primeiro, a análise, portadora de uma revisão inovadora; segundo, a desconstrução, no sentido de "delimitar ou destruir a legitimidade de um sistema"; terceiro, a cartografia dos caminhos de mudança que conduzem a novos modos de ser; por fim, como quarto momento, "a elaboração de mundos alternativos", até certo ponto utopicamente concebidos.


As famílias de regimes

Postulemos, como ponto de partida da argumentação que se segue, a tese segundo a qual existem duas grandes famílias de formas de Estado: a família autocrática, à qual pertencem os diferentes regimes de altergoverno, e a família não-autocrática, à qual pertencem os diferentes regimes de autogoverno. Exemplificando, situam-se na família autocrática regimes de tipo Monarquia Absoluta, Ditadura Militar, Sofocracia, Dominação Colonial, Oligarquia, Caudilhismo, Teocracia, Despotismo Oriental, Despotismo Esclarecido (Monarquia Ilustrada), Totalitarismo Fascista ou Stalinista. Do outro lado, na família não autocrática, situam-se regimes de outra natureza, tipo Liberalismo, Republicanismo, Anarquismo, Democracia, Sistema Conciliar, Sistema Corporativista, Monarquia Constitucional.

O critério que permite distinguir as duas famílias é o lugar em que está sediado o fundamento da soberania no interior da sociedade estatal. Dada a relação governantes-governados, temos que, no primeiro caso, o poder soberano encontra-se investido na própria pessoa do governante ou no seio de uma instituição específica, que existe em separado, destacada do conjunto dos governados. Por exemplo: Dinastia Real, Forças Armadas, Metrópole, Elite Tecno-Científica, Partido Único, Igreja, Elite Tradicional, Lider Carismático. No caso da outra família, composta pelos regimes não-autocráticos, verifica-se a relação inversa: o fundamento do poder soberano situa-se na pessoa dos próprios governados ou no âmbito de alguma instituição genérica, que não existe em separado, posto que abarca a totalidade dos governados, seja como Povo, Nação ou Corpo Eleitoral, seja como sistema de Federações, Corporações, Conselhos ou Partidos, sistemas organizados e integrados pelos próprios governados, indistintamente e em seu conjunto.

Em resumo, os regimes autocráticos podem ser descritos como absolutistas e os não-autocráticos, como relativistas. Na vigência dos primeiros, o poder apresenta-se como absoluto, porque se acha concentrado em si mesmo, desembaraçado de vínculos e isento de limites, não admitindo ser subordinado ou sequer contrastado, o que significa dizer que os detentores imediatos do poder estatal o exercem em caráter exclusivo. No caso oposto, dos regimes não-autocráticos, a exclusividade dos governantes é substituída pela dos governados, já que estes são legal e legitimamente detentores mediatos do poder estatal e o exercem em última instância, transformando-se assim em relativo o comando conferido por consentimento aos titulares imediatos do poder soberano delegado.

A classificação das formas de Estado em duas grandes famílias é útil por dois motivos. Primeiro porque cobre a maior parte das figuras históricas do Estado moderno, deixando da fora apenas alguns casos dúbios, como o Cesarismo (11) e o Leviatã de Hobbes, ou os paradoxais, como as Ditaduras Constitucionais em que os governantes investem-se de poderes de exceção tão variados e penetrantes que transformam em nulas, vácuas ou insubsistentes as garantias constantes do contrato de associação graças ao qual só aos governados cabe o direito de última palavra.

O segundo motivo que recomenda a classificação das formas de Estado em duas grandes famílias está em que essas providência representa o primeiro passo, o momento inicial do processo de demarcação do liberalismo.

Essa classificação constitui o instrumento com que podemos desmontar um dos pilares sobre o qual se ergue toda a estratégia de enaltecimento do liberalismo. Com efeito, a advocacia liberal opera a partir do princípio, jamais demonstrado, de que todos aqueles que combatem o liberalismo o fazem porque são, de um modo ou de outro, adeptos do autoritarismo. Quem é antiliberal ou meramente não-liberal é automaticamente reduzido à mísera condição de autocrata convicto ou de inocente útil a serviço das causas autocráticas.

Veja-se o livro A Anatomia de Antiliberalismo, de Stephen Holmes, um dos mais ativos militantes liberais da atualidade. Trata-se de um texto escrito para atacar e ridicularizar os inimigos do liberalismo. Mas quem são esses inimigos? Os três primeiros capítulos são dedicados, respectivamente, a Joseph de Maistre, Carl Schmitt e Leo Strauss, três pensadores ostensivamente identificados com doutrinas legitimadoras das formas autocráticas de Estado. Em seguida, vêm os comunitaristas conservadores --Alasdair MacIntyre e Christopher Lasch-- críticos contundentes da sociedade liberal contemporânea, mas refugiados na nostalgia de um passado idealizado, que os impede de propor alternativas não-liberais suscetíveis de se enquadrarem na família dos Estados não-autocráticos.

Finalmente, a única exceção na galeria dos autoritários e/ou conservadores antiliberais: o nosso Mangabeira Unger. Exceção apenas aparente, já que Mangabeira, inicialmente apresentado como um antiliberal anarquista e, por conseguinte, inscrito entre os membros da família dos não-autocráticos, acaba sendo redefinido como uma espécie de anarquista arrependido, que tentou, mas não conseguiu, deixar de ser um liberal. De fato, na seção ironicamente intitulada "Turning Soft", depois de lembrar que, em seus arroubos de "crítica total", Mangabeira "rotulara as idéias liberais fundamentais de 'potpourri de platitudes'", Holmes observa que, "embora flerte com essas posições extremas, ele também se protege. Em algumas passagens, simplesmente revoga suas críticas e adota uma posição indistinguível do liberalismo que, em outros momentos, impiedosamente ataca. Essa habilidosa mudança de posições seria um sintoma clássico de antiliberalismo 'soft'". Com efeito, ainda segundo Holmes, Mangabeira declara "que não é um antiliberal, mas apenas um não-liberal (que) sempre sustentou 'a inaceitabilidade da doutrina antiliberal pura'". Mas o que significa ser apenas um não-liberal? Para Holmes isso também é inaceitável. "Um não-liberal", diz ele, "é um antiliberal que, depois de haver desancado o liberalismo em todos os seus aspectos, faz uma surpreendente meia-volta e adota sem hesitar todas as idéias e instituições centrais do liberalismo. Um não-liberal é um antiliberal que não se move além do pensamento liberal. Um não-liberal é, em suma, um antiliberal soft. Depois de ter 'destruído' o liberalismo, ele simplesmente o repete." Mangabeira "rejeita totalmente o liberalismo, mas também o aceita. Esse ir-e-vir de um lado para outro é a característica essencial do antiliberalismo soft. (12)"

Conclusão: o debate não se dá com base na suposição de que existem duas grandes famílias de sistemas políticos. Do lado de lá, que é o lado do mal, admite-se que existam várias alternativas autocráticas; mas, do lado de cá, que é o lado do bem, não há alternativas: só existe o liberalismo e nada mais. Quem não é ou não quer ser um liberal não tem escolha: ou é rotulado de autocrático e lançado para o lado de lá, na companhia de Schmitt e de Maistre, -- quando não de Hitler, Stalin e Salazar -- ou tratado como um capitulacionista impenitente que ousa o anti enquanto permanece fincado no pró. Se fosse admitida a existência de alternativas não-autocráticas ao liberalismo, qualquer um de nós poderia dizer "sou um antiliberal", sem correr o risco de ser execrado. Mas, não! Essa possibilidade está vedada. A "anatomia do antiliberalismo" revela que todo antiliberal é, por isso mesmo, um autocrata, defensor de alguma famigerada modalidade de Estado de exceção. Não se pode sequer optar pela indeterminação e ser apenas um não-liberal, como teria feito Mangabeira Unger. Segundo Holmes, um não-liberal não passa de um antiliberal "who does not mean what he says".


Notas

(1) José Eduardo Faria, "Ideologia e Função do Modelo Liberal de Direito e Estado", Lua Nova, nº 14, abril/88.
(2) Folha de S. Paulo, 17-10-99
(3) Folha de S. Paulo, 14-04-00
(4) Apud Manuel Castells, A Era da Informação, vol 2, Paz e Terra, 1999
(5) Ver a esse respeito o instigante texto de F.Hayek, "Why I am not a Conservative", em The Constitution of Liberty, University of Chicago Press, 1960.
(6) Folha de S. Paulo, Mais, 19-12-99
(7) Jornal do Brasil, 27-04-91
(8) Trata-se da análise desenvolvida no livro As Duas Faces do Novo, a ser publicado oportunamente.
(9) Neste texto não se adota, em nenhum momento, o princípio do magister dixit para decidir se uma proposição é liberal ou não. Não se pode dizer que uma proposição é liberal simplesmente porque foi enunciada por alguém que acredita ser um liberal ou desfruta merecidamente dessa reputação. O critério aqui adotado é o da coerência lógica: é liberal toda proposição que puder ser deduzida dos postulados centrais do liberalismo. Daí a importância da reflexão, acima mencionada, sobre o que é o liberalismo enquanto doutrina específica, sobre qual é o cerne do discurso liberal. Outra observação: a desqualificação do magister dixit implica que as citações feitas ao longo destas páginas valem apenas como ilustração: o que importa é o significado dos argumentos, não o dos autores citados. (10) Goran Therborn, "El Pensamiento Critico del Siglo XX, em Encuentros XXI, nº17, Otoño del Sur, 2000, Chile.
(11) Dependendo do que se enfatize - a manipulação por parte do líder ou a coonestação por parte da massa - o cesarismo pode ser classificado tanto do lado autocrático quanto do lado não-autocrático. De qualquer modo, porém, o cesarismo distingue-se das chamadas "ditaduras simples". Nestas, como observa Giovanni Sartori, "o poder ditatorial é exercido através da intensificação dos instrumentos normais de coerção: exército, polícia, burocracia e magistratura. No esquema cesarista, ao contrário, o poder ditatorial se funda também no apoio das massas. "Teoria Geral da Ditadura", em Klaus von Beyme (ed), Theorie und Politik.
(12) Stephen Holmes, The Anatomy of Antiliberalism, HarvardUniversity Press, 1993



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