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La insignia
25 de abril de 2003


Paula Rego


Maria João Cantinho (*)
La Insignia. Portugal, abril de 2003.


Habituámo-nos a ver a pintura de Paula Rego nas obras de Adília Lopes, em Agustina Bessa-Luís, daí que a sua estranheza tenha sido, de alguma forma, amenizada por incorporar obras de carácter público e, mais do que isso, de grande poder mediático. Esse é um dos efeitos perversos que surgiu enquanto consequência da consagração da sua obra, tanto nacional como internacionalmente. Por isso, num país em que a arte continua a ser vista como produção de uma elite e os casos de sucesso são escassos, Paula Rego é indubitavelmente um dos mais valiosos exemplos de pintura portuguesa. Não obstante, suscita alguma polémica o facto de não residir em Portugal, mas em Inglaterra, e a principal galeria onde expõe é uma galeria inglesa. Além das retrospectivas da sua obra organizadas em Portugal, tanto pela Fundação Calouste Gulbenkian como pelo Centro Cultural de Belém, o seu último trabalho exposto em território português foi já em 1999, um ciclo intitulado O Crime do Padre Amaro, uma série de quadros que tinham como tema ou motivo a obra homónima de Eça de Queirós.

Paula Rego nasceu em Lisboa, em 1935 e, entre 1945 e 1951, frequentou a St. Julian's School de Carcavelos. A partir de 1952 frequentou a escola de pintura Slade School of Art, em Inglaterra, onde conhece o futuro marido, o pintor Victor Willing. De 1957 a 1963 viveu com Victor Willing, com quem casou, na Ericeira. No mesmo ano é-lhe atribuída uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa e, entre 1963 e 1975, vive entre Londres e Portugal. Esse período é, sem dúvida, importante, tanto na sua obra como na sua vida, permitindo-lhe sair da pequenez do país e do isolamento cultural em que se vivia. Em 1983, Paula Rego torna-se Professora convidada de Pintura na Slade School of Art e em 1988 faz a apresentação da Retrospectiva da sua obra na Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa e na Serpentine Gallery de Londres. Em 1990 é nomeada primeira artista associada da National Gallery de Londres. Artista de trabalho prolífico e regular, ela expõe frequentemente séries de novos trabalhos e revela uma actividade imparável, pautada pela excelente qualidade do seu trabalho, sempre favoravelmente acolhido pela crítica.

Quando Deleuze fala da obra de Francis Bacon, em Francis Bacon, Logique de la Sensation, utiliza uma expressão que parece ajustar-se perfeitamente à pintura em geral e à de Paula Rego, numa concentração intensa: "não se trata de reproduzir ou de inventar formas, mas de captar forças."(sublinhado meu). E, ainda que a expressão possa aparentar-se com um lugar comum, o certo é que, ao olhar-se a pintura de Paula Rego, o incómodo e a inquietante presença dessas forças actuantes activa-se, sob o olhar do espectador mais desprevenido. As suas figuras são grosseiras e, não raro, grotescas, pois é no campo de uma indecibilidade entre o humano e o animal que elas emergem, na maioria das vezes, configurando-se como seres habitados por uma espantosa força sexual.

A proximidade do trabalho da pintora com a linguagem do automatismo gestual aparece desde cedo, mercê da influência do surrealismo e dadaísmo. Paula Rego deixou-se fascinar pelo automatismo surrealista e privilegiou a arte produzida a partir da imaginação não dirigida, permitindo um jogo mais livre das faculdades e rompendo com o habitual determinismo que se apresenta na relação entre o pensamento e o gesto. É a partir deste contexto do automatismo e da produção de uma imagética espontânea, tal como foi defendida pelos principais surrealistas, não apenas ao nível da escrita, mas aplicando-se também às artes plásticas, que deve ser lida a obra de Paula Rego que se interessou, igualmente, pela collage e pelo seu manuseamento. Desta, a autora reteve o gosto pela imagética que cruza fragmentos e palavras, partindo para a utilização de histórias completas, tomadas como dispositivos partilhados, lugares de comunicação entre o interior e o exterior, formas de comunicação que permitem passagens entre o privado e o público, o individual e colectivo.

Ainda que as histórias de Paula Rego sejam bem conhecidas, é necessário frisar que a relação das suas pinturas com as mesmas raramente consubstancializam uma mera ilustração. É ela própria quem esclarece, dizendo que, muitas vezes, já se encontra a desenvolver o trabalho quando encontra a história "no caminho", incorporando-a, isto é, nomeando uma imagem como elemento de uma história, utilizando essa imagem para comunicar e configurar a ideia. Assim aconteceu com As Criadas, utilizando a história verídica das irmãs Papin - e que tanto fascinou Genet e os surrealistas, pois aparentemente tratou-se de um crime sem motivo, o que constituiu uma causa célebre na época - que assassinaram a mãe e a filha de uma família abastada de Paris, por volta de 1930. Exemplo da utilização que Paula Rego faz de narrativas já existentes, o quadro constitui-se como uma apresentação (e uma reflexão) sobre o poder e a transgressão, pois as criadas usurpam o poder pelo assassínio. No quadro A Família, que sugere uma intrincada sequência de relações entre os vários elementos, articulada por uma série de imagens unificada por uma narrativa (semelhante, na sua estrutura, ao quadro anteriormente citado). Neste, trata-se da relação da mulher e dos filhos com o homem e a situação reveste-se de uma ambiguidade perturbante, não deixando perceber se a família ajuda ou ameaça o homem. A sua pose e passividade permitem pensá-lo como um Lázaro, enquanto outros elementos do quadro sugerem uma ambiguidade e uma indecibilidade latentes e actuantes num duplo registo: no oratório português, ao fundo, S.Jorge mata o dragão e na sua base, uma garça-real, tanto pode estar a alimentar como a atacar uma raposa.

Codificando e comunicando as histórias mediante imagens visuais fortíssimas, Paula Rego raramente procura encontrar narrativas já estabelecidas, preferindo trabalhar com histórias que fazem parte de si mesma, com as quais cresceu, conferindo-lhes significados e reconhecendo-as como repositórios de conhecimento e de poder, exteriores aos modelos tradicionais, fazendo-as funcionar mais pela manipulação e subversão, do que propriamente pela dominação e uso convencional. Abrindo-se à possibilidade de um múltiplo funcionamento dessas narrativas, opta por um reconhecimento da sua autonomia e segue-as nesse movimento, à sua vontade própria. Muitas vezes segue, também, (re)trabalhando e (re)combinando materiais que, gerando outros conjuntos, funcionam como chaves ou aberturas da experiência individual ou partilhada. Os motivos estabelecem cadeias e sequências de conteúdos significativos, comunicando de quadro para quadro, do artista para o quadro e para nós. Só para referir um exemplo, cito o cão (aparece logo nas primeiras obras da autora), como "chave", que transmite e dá forma a um conjunto específico de preocupações de ordem variada.

Em 1986, Paula Rego deu início a uma série de quadros cujo título é Menina com Cão. Iniciando-se com a imagem de uma menina a dar de comer a um cão, esta série coloca o cão à mercê dos tratos (ambíguos) de uma menina. O cão parece, à partida, um animal de estimação, mas é, ao mesmo tempo, uma boneca, um bébé e um homem, sendo a conotação claramente explicitada em Uma Menina a Levantar as Saias para Um Cão. Paula Rego põe em jogo uma série de elementos iconográficos que interagem entre si e originam uma sequência de acontecimentos narrativos e simbólicos, portadores de ideias como o amor, a confiança, o medo e a dominação. No ano seguinte, ela continuou a desenvolver a história do cão, onde explora e encena as tensões estabelecidas anteriormente. Em Armadilha o tema da dominação reaparece e na sua obra A Pequena Assassina, o cão ameaçado desapareceu do enquadramento da pintura. Muitas das categorias do cão, tomado como elemento iconográfico de relevo, reaparecerão em obras posteriores, com novas combinações e significados, mostrando-se nesse horizonte de indecibilidade de que falei anteriormente. Em algumas obras, o cão assume um papel humano ou, mesmo divino, o que lhe confere a ambiguidade própria de um conceito tensional que nunca se deixa aprisionar enquanto categoria, mas que funciona no interior de uma metamorfose que se cumpre no quadro da imagem. Daí que uma tensão esteja sempre presente nos seus quadros.

Uma outra questão, que decorre desta é, sem dúvida, a da identidade e da sua complexidade, enquanto identidade individual. Na sua obra A Dança, uma pintura que representa algumas pessoas a dançar numa praia, para escolher um caso representativo, a preocupação com a construção da identidade parece converter-se na força motriz essencial do quadro, pois este trabalho revela as diversas modalidades que uma mulher tem, em que se desenvolve e se afirma, procurando estruturar a ideia que faz de si mesma. Ela distingue-se dos outros, reservando para si um espaço composicional à parte e olha-nos, constituindo o seu olhar uma multiplicidade e variedade de modos diferentes de ser enquanto mulher, concentrando um gesto de procura e conhecimento de si própria. Esta identidade, porém, constrói-se pela luta, ou melhor, num conflito, pois todos os seus quadros em que a questão da identidade se coloca, se configuram na luta, muitas vezes, ocorrendo violentamente e não sem a embriaguez e o inebriamento das pulsões vitais e físicas, algo que é tão consonante e familiar ao espírito do surrealismo.

Numa conversa com Fiona Bradley (1), Paula Rego fala do prazer da criação, aliado ao da destruição, o que a coloca justamente numa linha de força próxima de Georges Bataille, quando afirmava que a primeira motivação para a arte é o desejo de destruir, mais do que o de decorar o vazio do suporte onde emerge a obra. Daí que não possa pensar-se o gosto e fascínio da pintora pela violência, desligando-o do seu contexto: uma raiva destrutiva que é fonte e magma da criação, raiva que é posta como ruptura fundante, ao nível do conceito de identidade das figuras representadas.

Muitas das histórias que a pintora cria são tecidas em torno da família e das relações internas que se criam no seu interior. Paula Rego pinta crianças que lutam com os pais para alcançarem a sua identidade própria, constituindo a sua fragilidade e simultânea ferocidade um reconhecimento das pulsões edipianas e inconscientes, que aparecem sob a forma de figuras humanas e animais, simbolizando os conflitos de ordem sexual.

A fisicidade das suas figuras femininas é outro elemento iconográfico que marca a violência da pulsão sexual. Com a série de Mulher-Cão (1994), a pintora assimilou uma estranha história de que ouviu falar, a história de uma mulher que vivia sozinha com os seus animais numa casa enorme, perdida algures no meio das dunas. Quando o vento soprava, a mulher ouvia a voz de uma criança na chaminé, que lhe dizia para matar todos os animais. Enlouquecida pelo vento, a mulher põe-se de cócoras, abre a boca e engole todos os animais. A recordação desta história acudiu-lhe durante uma sessão de desenho e daí nasceu uma figura que resultou como uma mulher-cão, em parte proveniente da história que ouvira, mas sobretudo como o início de um novo ciclo de mulheres solitárias e de aparência feroz, cuja natureza visceral e sexual salta à vista. Esta ligação visceral ao corpo e a uma força sexual intensa habita muitas das suas figuras, sobretudo a partir dessa série. Porém, a série de mulheres-avestruzes, sendo extremamente físicas, revelam aspirações espirituais que as afastam das mulheres-cão, essencialmente agarradas à terra.

Há um aspecto que ainda não foi aqui referido e que o marido da pintora, o igualmente pintor Victor Willing, já falecido, chama a atenção. É a relação entre a extrema complexidade das suas histórias, que parece proporcionar-nos, muitas vezes, o acesso a uma obra, não raro hermética e fechada no seu simbolismo, e a lógica que lhe é própria, não a deixando perder nunca o pé na construção das suas narrativas. Os elementos básicos que lhe presidem (e se repetem amiúde) e que são mais persistentes, ao longo da sua obra, são o tema da Dominação o do Tempo Passado. Se a dominação assume diversas formas, como nas lutas entre a criança e o pai, do indivíduo pelo Estado, da psique pelo sonho ou ideal, da personalidade pela paixão, da consciência pela culpa, as agressões que dela resultam geram a violência das suas representações, violência que se confunde com a da artista, ao realizar a imagem no quadro. Muitas vezes, esses paradoxos resultam numa crueldade e obscenidade, em toda a sua força. E essa violência orgiástica confunde-se, nasce dela e funde-se nela, com a frequente alusão ao passado. Não se trata de um retorno nostálgico que se apresenta na sua obra, de uma tentativa de restituição da aura, mas o que a pintora faz é comentar ou aludir ao passado no presente: o exilado, por exemplo, recorda o seu cão, a sua noiva ou a sua força; o derrotado relembra a esperança antiga e os seus projectos; o adulto, os seus medos de infância.

A visão das crianças, na obra de Paula Rego, nunca se faz concreta nas suas formas mais adocicadas ou ternas, das habituais representações, mas sempre como o acesso ao terror (concentrando uma violência intensa), o qual é domesticado de forma simbólica, pelo acto de representar. A infância constitui um dos seus elementos emblemáticos e iconográfico por excelência. Não diz apenas respeito ao estado da inocência e descoberta dos instintos da sexualidade e da dominação, mas configura-se igualmente como um estado de conhecimento, que é também um espaço de poder (sobretudo a partir da década de 80, em que o político invade a esfera do doméstico, na sua obra). E o espaço da infância é privilegiado pela autora: a casa, em especial a nursery, são zonas frequentemente representadas, espelhando nelas as complexas relações de dominação e transgressão, já aqui referidas anteriormente. Se bem que a figura da menina, na sua obra, conheça os seus precedentes marcantes (tais como o erotismo das meninas púberes de Balthus e as jeune filles de Max Ernst, com as suas conotações do psiquismo inconsciente), as meninas de Paula Rego nunca exploram as origens psíquicas, mas o que a artista faz ou procura fazer é expôr, de um modo inabalável, esse passado silenciado que assombra o presente histórico. Elas, as suas obras, são explorações e personificações de complexos estados emotivos e psíquicos, estados esses que remetem para a infância, mas que também agarram a vida psíquica adulta: como podem coexistir e coabitar a vaidade e a vergonha? O sentimento de poder e o embaraço que daí resulta? O amor e o medo, jorrarão eles da mesma fonte? Do que é que se está a falar quando nos referimos às relações complexas que se estruturam no interior da família?

A inquietação, como se pode ver, ao longo da minha análise, é o elemento central de toda a sua obra, crivada nos paradoxos de que o quadro se faz revelação. O simbolismo e o dualismo sempre presentes, na sua ambiguidade, são magistralmente trabalhados enquanto imagens pictóricas, prometendo-nos um acesso que nunca nos será inteiramente oferecido. Persiste, nas suas imagens, o gosto da decifração, pelo (re)trabalhar e contínua redisposição dos motivos iconográficos que nos abrem as suas obras, como chaves de significado, permitindo essa remissão de um quadro a outro, da autora para o quadro e, por sua vez, do quadro até nós, esperando a nossa atenção.


(1) Catálogo da retrospectiva da obra de Paula Rego, para o CCB, em 1999.
(*) Maria João Cantinho é colunista de Zona Non e Storm



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